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Em Busca da Imortalidade II

VOVÔ LOURENÇO


Fazia muito tempo que meu avô Lourenço havia nos deixado. Em casa ainda a saudade compungia nossos corações. Era um homem sensato, cortês, altivo, severo quando necessário e afável nas circunstâncias exatas. E quem, lá em casa, não se lembrava dos seus serões ao cair da noite quando remexia o baú das suas memórias e contava casos e mais casos, se acontecidos ou não, ninguém sabia. Mas, o fato é que vovô prendia nossas atenções a ponto de ficarmos por ele completamente magnetizados. E éramos as crianças, os jovens, adultos, velhos e todo o pessoal da fazenda. Cada um dava conta dos seus afazeres para que, na hora certa, estivéssemos em volta daquele homem extraordinário para ouvir suas façanhas ou dos outros ou dos seres de luz, como ele dizia.

Certa vez contou a história de um cisne que conversava com os deuses. Disse ele que o tal cisne existiu fazia tempo, no tempo da sua infância quando na fazenda ainda existia um lago muito grande e que depois foi soterrado para que se construíssem os engenhos. Pelo sim, pelo não era melhor para todos nós, ouvintes de suas histórias, aceitarmos o tal soterramento, muito embora sabermos que soterrar um lago muito grande pode causar um enorme dano ao ecossistema, além de ser quase que inviável tal empreitada. Bom, dizia ele:


– Era por volta das seis horas da tarde que o cisne esticava seu pescoço, aprumava suas patas a ponto de ficar de pé sobre as águas até mesmo sem tocá-las. Então ele aguçava seus sentidos e ouvia e concordava ou não. Depois fazia uma reverência e, de volta ao lago, nadava e nadava até um canto do mesmo pondo-se a meditar.


Nós, crianças ficávamos imaginando como pode um cisne conversar com alguém invisível. Mas nas fazendas essas histórias de seres invisíveis visitando os visíveis eram muito comuns e até assustadoras. E a história do vovô Lourenço era tão cândida perante as outras que as suplantava pela beleza do conteúdo. Naquele dia não aguentei e indaguei:


– Vovô Lourenço, pode dizer o que o cisne ouvia do ser invisível?


Vovô coçou suas barbas, tirou seu velho e surrado chapéu de couro, olhou não sei se para mim ou para minha infância indagadora e disse:


– Miguel, eu só conto se você jurar que vai acreditar.


– Bem... Eu... Não sei...


Não dava para jurar sobre uma coisa que nem sabia o que era. As outras pessoas me olharam. No fundo elas queriam que eu jurasse para que o vovô contasse satisfazendo suas curiosidades. Sempre assim, um tem que pagar por todos. Minha prima Soninha, muito esprivitada, foi logo dizendo sem pensar, como sempre fazia:


– Eu juro... Eu juro...


Vovô Lourenço olhou para ela e olhou para mim e disse com voz de profeta:


–Miguel tenho quase certeza de que você vai se casar com a Soninha!


– Eu? Nunca... Nunca...

E a Soninha revidou:


– Moleque bobo. Quero não.


Bem eu estava com uns dez anos e ela uns sete. E já estávamos dizendo não a um possível acordo engendrado antes de renascermos. Mas isso não vem ao caso. Vovô Lourenço nos olhou e disse com precisão:


– Todo cisne conhece bem os caminhos dos céus. Eles vão lá e depois voltam e quando voltam trazem no peito lições de como irem mais além e de como se comportarem no solo, na água ou até nos terreiros e nas casas. Os cisnes sabem que vão morrer, mas eles nunca se assustam com isso. Sabem que quando morrerem seus voos serão muito mais altos e longos e poderão ver e sentir muito mais coisas que sentem quando necessitam voltar para o solo da terra. Quando no solo eles ouvem as vozes daqueles que já voam muito longe. Por isso o cisne ouvia e depois ia para um canto meditar. Essas coisas pedem muita meditação!


Vovô nos olhou, sorriu e disse:


– Todos vocês são cisnes ainda de voos pequenos. Necessitarão morrer para conhecer o que tem além dessas nuvens, lá dentro daquele azul que enfeita nossos dias, tardes e noites quando ele fica pontilhado de estrelas. Depois de morrer vocês irão renascer, voltar ao solo da terra para mergulhar com mais profundidade nas águas dos conhecimentos, das virtudes e do amor. Depois morrerão de novo e de novo renascerão. O Cisne tanto faz isso que se transforma numa águia ligeira e vão longe, muito longe, assim como vocês farão. Um dia vão se transformar em alguém muito maior e irão a locais tão belos, mas tão belos que não mais aqui voltarão.


Naquela tarde todos nós choramos. Hoje, tanto tempo depois, sinto muitas saudades do vovô Lourenço, principalmente por saber que ele não pousará tão cedo no solo da terra, pois, nascendo, morrendo, vivendo, renascendo ainda cumpriu a Lei e se tornou livre por isso.


“Os dois mundos divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si, diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. Os dois reinos são na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos”. Extraído do livro: O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell
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