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Em Busca da Imortalidade VI

Atualizado: 16 de nov. de 2020

REVERTENDO O CASO

– Mas, eu não quero morrer. Insistia o velhinho diante do médico que trazia nas mãos resultados assustadores de exames que sentenciavam morte próxima...


Este é o início de um romance que ganhei da boa Esmeralda no dia do meu aniversário. Penso que não haveria mais nada a ler ali. Comecei a refletir sobre o que leva um velhinho doente, muito doente e não querer morrer. Seria o culto à vida ou lembranças atávicas de muitas mortes ao longo dos renascimentos? O subconsciente arquiva tudo e tudo fica em movimento nas suas profundezas. Vez que outra emerge algo incomodando ou orientando a consciência. A tal da morte deve ter um amplo espaço dentro das pessoas. Quase ninguém consegue uma boa relação com ela. Nestes casos, pode significar que as mortes anteriores foram traumáticas, gerando complexos intermináveis de dor, medo, sustos, repugnas. Ou não?


Um dia dei uma de viajante aos interiores sombrios da mente humana. Era um dia de morte. Minha amada Dora, esposa amiga e companheira, estava velando o corpo do seu também amado pai, homem probo, guardião sensato da moral e da ética, que deixava um rico legado de benemerências tanto materiais quanto espirituais. Mas, Dora chorava e chorava muito. Por que ela chorava sendo ele alguém que necessitava deixar aquele corpo doente, extremamente doente? Seria a dor antecipada do não mais convívio? Neste caso ela não o amava verdadeiramente. Utilizava-se dele para compensar suas vibrações de alma carente de pai por se firmar no arquétipo de alguma criança rebelde, inconformada. É... Podia ser.


Na medida em que as horas escoavam, mais ela chorava. Nem tentei consolar. Numa única tentativa ela me afastou com as mãos e decididamente falou:


–Me deixa.


Havia lido noutro romance que quando a pessoa morre busca seus caminhos de conformidade com a vida que aqui escolheu viver. Neste caso, meu sogro deveria seguir um belo caminho, pois que era exemplo de bondade social. Aliás, vale aqui ressaltar que aquele local estava cheio, muito cheio de pessoas a ele agradecidas. Traziam flores, traziam paz, choros sim, mas acompanhados de sorrisos. Dona Durvalina, eterna doente que não morre nunca, até disse:


–Quantas vezes ele me curou!


Estranho. Ele a curava e ela era doente? De quem era a culpa? De uma cura mal feita ou de uma doente amiga da enfermidade? Não se preocupem comigo. Sou assim mesmo, pesquisador nato. Acho que foi por isso que Dora me escolheu ao Flávio, rico, vistoso, bonito, etc. Enquanto que sou franzino, pobre, sem graça fisicamente, mas perspicaz perante os momentos, os acontecimentos. Lia muito, estudava menos. Foi por isso que a boa Esmeralda, minha irmã, presenteou-me com o livro. Leitores adoram receber livros. Um dia fui viajar com minha esposa. Comemorávamos nosso primeiro ano de casados. É bom dizer que não tivemos filhos e para não nos culparmos, não fizemos exames para ver quem era estéril. Foi melhor assim. Caminhávamos numa ponte famosa enquanto observávamos a paisagem. Ela me disse:


– Nada morre.


Nada morre, contudo ela não disse: ninguém morre. Há diferenças entre o nada e o ninguém? Um dia ouvi o sacerdote local dizer que a dor da morte está na razão direta da perda. Então, neste caso, quem morre está cometendo um grande sortilégio por causar perdas em alguém, principalmente naqueles que mais o ama. Estranho. Paradoxal. Não. Não deve ser isso. Dei uma espiada no corpo do meu sogro. Estava tão franzino, muito mais que eu, era um dó só! Precisava mesmo morrer. Eu desejei sua morte no dia anterior quando fui visitá-lo no hospital. Ele não gemia, mas emitia um som de despedida e ninguém reconhecia naquele som um pedido de soltura e mais o atormentavam pedindo sua presença naquele corpo de dor. Não. Decididamente isso não pode ser justo.


Aproximei daquele corpo com o devido respeito e pensei quase que em voz alta:


– O senhor está certo. É hora mesmo de morrer.


Eu juro por tudo que é mais sagrado. Ele se mexeu, me olhou e disse pensando:


– Sim. Estou muito feliz. Pena que minha felicidade de agora não representa a felicidade nos outros pela minha libertação.

Imaginem como fiquei, Estava conversando com um morto! Só mais tarde o Sebastião da Comunidade Espírita local me esclareceu:


– Sim. Você conversou com o Espírito. O corpo morre, mas o Espírito nunca!

Então, nesse caso a Dora viveu muitas vidas e não entendeu o porquê continuava viva! E muito menos porque seu pai tinha que ir. Não adiantava falar isso pra ela. Sua dor era intensa. Depois que conversei com o finado, durante o seu próprio velório, saí um pouco daquele ambiente para ouvir o que os outros diziam lá fora. Triste, viu? Muito triste. Enquanto muitos respeitavam o momento, outras pessoas não faziam o mesmo, Percebi desrespeitos, falas e risos e desperdícios de tempo. Deveriam ir todos embora cuidar de suas vidas. Os assuntos eram infelizes, estranhos e vi até um pecuarista comprar bois de outro pecuarista ali, naquele local sagrado. Dora nem podia saber disso. A mãe da Dora tentou consolar a filha. A filha falou:


– Me deixa.


A mesma coisa que havia dito pra mim e também para suas outras duas irmãs. Todos estavam calmos, menos ela. Aquilo começou a me incomodar. Remexi as lembranças, tentei penetrar no mundo íntimo da minha esposa. Olhava fixamente para ela e, surpresa: em dado momento quando ela achou que ninguém a observava, aproximou-se mais do que devia daquele corpo que pedia respeito e disse baixinho, muito baixinho, quase murmurando para que ninguém ouvisse:


– Perdoa-me?


Perdoar? Sempre vi Dora fazer o impossível para agradar aquele pai. Qual perdão de qual culpa? Teria eu o direito de saber? Há coisas que pertencem somente a intimidade de cada um com o seu Deus interno. Silenciei-me. Agora já entendia a razão daquele choro convulso, inexplicável para muitos. Era o choro da culpa. Qual erro? Qual desastre, se é que foi um desastre... É, podia também ser um chilique de filhinha mimada. Como acontece disto nos cemitérios do mundo! Mas, seu pai amava a todos por igual. Levantei-me e fui até ela e arrisquei:


– Seu pai foi o mais generoso dos homens que conheci.


Não era uma palavra carinhosa para uma filha em dor? Vocês nem imagina o que aconteceu. Dora deu um grito e saiu correndo e correu muito e ninguém a alcançou. Só muito tarde ela chegou em casa, depois de sepultado o corpo do pai. Ritual de despedida do qual ela não participou.

Um dia, muito depois, alguém me disse:


– O sentimento de culpa corrói feito uma faca que vai desgastando a paz sem nunca acabar com a tortura. O que é culpado deve arrepender-se e corrigir. Sua esposa, com certeza não teve tempo de corrigir. Daí a faca da tortura. Sem reverter a causa, a dor não cessa.


Dora nunca me disse o que se passou entre ela e seu pai e qual foi sua culpa. Certa feita deixou um enigma no ar:


– Devo alguma coisa a você? Perguntou-me e completou:


– Quando amo demais costumo ser ingrata com o ser que amo, exigindo dele coisas que não mereço receber. E o mato um pouquinho com minhas injúrias.


O que foi que o pai negou àquela filha que a fez matá-lo um pouquinho e que se refletiu tão forte na hora daquela morte? A quem podemos estar matando e que nos causará sofrimento naquela hora da libertação, como meu lúcido sogro me disse? Será que atualmente há alguém assim em seu convívio? Tendo, é bom reverter o caso. Não acha?

“Nenhuma criatura pode atingir um grau mais alto da natureza sem cessar de existir”.
Extraído do livro: O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell
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