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Em Busca da Imortalidade VIII

Atualizado: 19 de nov. de 2020

EU BATI. ELE BATEU. NÓS MORREMOS


Pelo título desta história dá a impressão que a coisa foi muito séria, triste e trágica. Sim, foi mesmo. Era final de ano e nos deslocávamos para a cidade do interior onde nossa família preparava as ceias de natal e ano novo. Era costume nosso. Estivéssemos onde estivéssemos e, dia 20 de dezembro íamos para o sítio de minha avó, na Colina dos Mares, como é chamado o local. Gostava muito de ir lá. Desde cedo fui para a cidade no intuito de estudar. Formei-me engenheiro civil e trabalhava em uma construtora. Gostava muito do que fazia. Era magnífico ver um prédio sair do papel e ir se erguendo rumo aos céus. Cada detalhe da obra era supervisionado por mim. Chegava cedo ao canteiro de obras, tomava café com os pedreiros, serventes, carpinteiros e demais membros da equipe de construção. Gostava de ouvi-los falar sobre futebol, bebidas, mulheres, sonhos de enriquecerem, etc. Aquilo era minha vida. Minha doce vida.


–Doutor, vai viajar amanhã? Perguntou-me o servente Nicola.


– Sim. Respondi com alegria nos olhos.


– Fica doutor. Amanhã é o primeiro aniversário da minha filhinha Amanda e queria muito que o senhor estivesse presente.


Fui o padrinho de batismo da Amanda e nem me lembrava mais. Corri ao mercado e comprei um presente para a menina entregando-o ao Nicola.


– Doutor, agradeço muito o presente e sei que minha filhinha vai gostar também, mas o presente não substitui sua presença.


Ele parecia gostar muito de mim. E sabem por quê? Descobri depois que ele havia sido meu pai numa encarnação antiga e que guardava profundo afeto por mim. Eu, materialista ferrenho nem de longe poderia imaginar tal coisa. Até pensei em adiar um dia minha partida. Nada me custaria ir ao aniversário da menina, mas meu primo Augusto havia combinado comigo de irmos juntos, em comboio pelas estradas além. Trato é trato. E, no dia seguinte bem cedo entrei no carro. Estava sozinho. Minha namorada resolveu passar as festas de fim de ano com um avô doente. Marquei com o Augusto encontrá-lo num determinado posto que ficava a alguns quilômetros do centro da cidade e na direção da Colina dos Mares. Trato feito, trato cumprido. Não demorou muito e ele apareceu também sozinho. Havia terminado o namoro com a Cristina. Sempre achei a Cristina muito intelectual, bem diferente do Augusto, conversador e exibicionista. Penso que ela deveria buscar um homem com perfil de filósofo. Dariam muito bem e seria um relacionamento perfeito de frutos espiritualistas que não me atraiam nem um pouco.


Sabe o que pensa um materialista? Muito simples: pensa apenas que o mundo é tudo e tudo que nele existe deve ser buscado e curtido em toda sua potencialidade. O mundo lhe basta. As coisas que o compõem são visíveis, tangíveis e conversam com os habitantes. Sendo coisas belas falam de suas belezas. Sendo coisas serviçais prestam seus serviços e sendo coisas neutras, colocam-se ao dispor para o uso que lhe for atribuído. Assim, o cimento forma prédio, o barro o tijolo, o ferro as armações que sustentam e por aí vai. Pra que imaginar o inexistente? O abstrato ou naquele que morreu? A morte é um ponto final da vida. E todos chegam a este ponto, daí que se deve viver intensamente enquanto o tal ponto não chega. Bem assim era eu, o materialista.


Meu carro era do ano e da marca que eu mais admirava. Ainda estava pagando parcelas do financiamento. O Augusto era um pouco mais relaxado. O carro dele era dois anos mais velho que o meu e necessitava das revisões que ele sempre deixava para depois.


–Vai à frente que eu te acompanho. Disse-me. E lá fomos nós estrada a fora para duzentos e cinquenta quilômetros de viagem. Ouvia Papa Roach. Um estilo musical que combinava com minha vida. Ele deveria estar ouvindo Beatles. Era louco por eles, um fã tardio daquele grupo de rapazes britânicos. Ia a uns cento e vinte por hora. Em dado momento, Augusto picou os faróis, deu seta e começou a me ultrapassar. Quando chegou perto da minha janela deu um grito estridente:


– Topa um pega?


Nem tive tempo de responder, pois apareceu um caminhão e... Vazio absoluto. Eu bati. Ele bateu. Nós morremos. E éramos apenas dois primos de aproximadamente trinta anos cada um. O nosso ponto final havia chegado. Acabou o engenheiro civil. Acabou o piloto de helicóptero. Estragamos as festas do final de ano da nossa amada família. Enlutamos a todos. Estávamos mortos num velório triste e em momento inoportuno. Momento de Natal, de nascimento, de abraços e confraternizações. Mas, a morte nos pegou de surpresa.


Da minha parte não ouvia nada apenas um estampido, um silvo intermitente dentro da cabeça, por isso não acreditei que estava morto. Mas, a vida reserva surpresas. De repente estava de pé e vi os destroços dos carros e o caminhão tombado prestes a cair num abismo. Olhei Augusto morto. Tentei ver o motorista do caminhão, mas a posição do veículo não me permitia. Só restava uma coisa a fazer: pedir socorro. Era uma estrada estreita com pouco movimento, o trânsito não era intenso. Comecei a andar buscando um posto de gasolina, uma vila, alguém que viesse de lá ou de cá. Nada. Tudo silêncio a não ser o estampido. Tinha uma pedra, assentei-me nela, na esperança de que alguém surgisse. Nada. Ninguém. Fiquei ali o dia todo a noite toda. Adormeci, acordei e, estranho, não vi mais os veículos. Andei em direção ao local do acidente e não havia mais nada.


– Será que não me viram aqui? Pensei.


O estampido continuava, fui caminhando, precisava saber quem removeu os veículos e onde estava o corpo do Augusto. Precisava telefonar para nossa família, avisar do acontecido. Nada. Meu celular havia desaparecido. O jeito era mesmo andar e buscar socorro e explicações. Devo ter andado dias e noites sem ver ninguém. Estava começando a desconfiar de tudo aquilo.


– Será que não estou sonhando? Estando, quero acordar logo.


Mas, tinha lembranças vivas de que estava viajando, ouvindo música, cantarolando e sonhando rever Marisinha, adorada prima, meu primeiro amor, primeira mão que peguei, primeiro beijo! Ah, como são ricas essas lembranças. Acho que ela me esperava com todo seu ar de fazendeira precoce. Com seus doces e quitutes, seu fazer delicado, seu existir ameno. Que olhar meu Deus! Tão profundo e tão penetrante! O problema era que minha adorada companheira de infância não trocaria por nada, nem por mim, sua vida naquele recanto da natureza para uma turbulenta e tumultuada vida na cidade. Então era melhor que ela ficasse por lá, enquanto eu fico por aqui. Assim pensava, assim caminhava. Numa bela manha acordei de algum sono e o que vi? Pasmem vocês: vi Marisinha colhendo flores, muitas flores. Seu olhar cândido estava triste e juro que vi uma lágrima escapar das suas lindas faces morenas. Aproximei-me dela e ela dizia:


– Por que, meu Deus. Por quê?


Depois sentou-se feito princesa nalgum trono de ramos floridos. Pegou uma daquelas lindas flores silvestres afagando-a e de novo disse:


– É como se afagasse você!


Senti um calafrio percorrer meu corpo. Aproximei-me mais e de novo ouvi:


– Eu tinha esperanças. O amor nos dá esperanças!


Algo estranho aconteceu comigo. Senti uma onda de luz, estranha luz que calou o terrível zumbido dos meus ouvidos e, meio atordoado, meio sem saber o que fazer ou dizer, ouvi de novo vindo dela:


– Aproxime-se dos bons Espíritos. Eles auxiliarão você, meu único e grande amor! E ela cantou algo tão sublime que me deixei embalar na suavidade da melodia. Ela cantava, chorava, sorria e disse:


– Obrigada amigo, por você vir para socorrê-lo. Sei que ele está aqui. Conduza-o.


E ela teve como resposta:


– Farei de tudo para encaminhá-lo. Ainda está sonolento. Não consegue perceber o que aconteceu.


– Eu o perdi. Disse ela.


– Não. Apenas deixou para depois!


Já faz dois anos que tudo aconteceu. Não foi nada fácil saber que havia morrido e que a vida continuava em colônias, vilas, cidades... Faz tempo que não vejo o Augusto. Deve estar em busca de si mesmo, assim como eu. O motorista do caminhão não morreu, mas ficou paralítico. Cada um com sua experiência.


Agora sei o que é a morte. É o prelúdio da vida. Morri para não complicar minha encarnação. O materialismo estava me cegando e me perderia nele e por ele. E não há mais tempo para vãs filosofias. Não conseguiria nunca ver o amor de Marisinha. Doce e suave como o murmurar das águas em uma tarde solitária tendo por testemunho apenas o céu azul rosado que se despede hoje para retornar amanhã. Assim como eu.


“A busca da imortalidade física procede da incompreensão do ensinamento tradicional. O problema básico é, na realidade, aumentar a pupila, para que o corpo, com a personalidade que o acompanha, não obstrua a visão. Assim, a imortalidade é experimentada como um fato presente: Está aqui! Está aqui!” Extraído do livro: O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell
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