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Eternos Peregrinos - Capítulo 26

Sobre Promessas



As forças estavam se extinguindo. Não era mais possível caminhar. Todos já estavam distantes e não era justo retardar-lhes a jornada. O que o fizera enfraquecer assim? Pensava enquanto arrastava-se pelo chão. Antero tentava reanima-lo, mas suas pernas não mais atendiam ao comando. Desejava muito ir. Desejava muito encontrar-se com as romarias que, certamente, já haviam chegado. Despediu-se de Antero e deixou-se cair, vencido. Seus braços estirados deram-lhe uma sensação de alívio. Suas pernas agradecidas acomodaram-se e a respiração, agora menos tensa suavizou-se. Milton começava ali o seu fim. Havia nascido há trinta e sete anos. Sempre foi dedicado filho e neto, depois esposo e pai. Todos o respeitavam e depositavam nele a confiança que se tem nos justos. Despediu-se da esposa e filhos e foi ter com a santa da sua devoção. Era velha promessa. Deveria arrastar-se de joelhos até os pés daquela imagem idolatrada. Selma, seu anjo em forma de criança, havia sido salva por ela, num momento de extrema delicadeza quando foi atingida por uma víbora. Todos a davam como morta e Milton fez sua promessa. A menina recuperou-se. A promessa seria paga no ano seguinte, contudo, aquele pai não conseguia continuar sua viagem.

O corpo foi entregue à família que, aos prantos, recebeu aquele ente amado totalmente desfigurado pelo tempo que passou naquele chão exposto aos pássaros e ao relento. Ninguém sabia explicar o que houvera acontecido com ele. Partiu cedo e vendendo saúde. Era projeto retornar em quatro dias no máximo. A jornada era longa, porém sua fortaleza física facilitaria seu caminhar. Selma, num canto e desolada, chorava a morte do pai achando-se culpada. Porque não fora ela e sim ele? Porque teria que viver para relembrar o ato heroico do pai para salva-la?

O tempo passou. Selma cresceu, tornou-se moça bonita, atraente, porém triste. Nada demovia de si a angústia de ter visto o pai partir e não voltar e de ver seu corpo deixado para trás e trazido por estranhos piedosos que de tanto perguntar chegaram ao destino com aquela carga. Onde estavam os amigos que partiram com ele? Por que o deixaram ali, sem o mínimo de compaixão, de ajuda?

Era o mês das comemorações à santa da devoção de Milton. Muitas pessoas estavam reunidas em torno daquela imagem trazida pelo vigário. Agora não precisavam mais ir à igreja sede, podiam oferecer seus agradecimentos ali mesmo. Selma aproximou-se com vagar. As pessoas contritas entregavam seus votos. Ali estavam os homens que haviam abandonado seu pai naquela estrada quando ela era ainda uma criança.. E eles agradeciam. Selma percebeu que eram eternos agradecidos por eternas graças suplicadas continuamente por seus corações aflitos e incapazes. Selma nada tinha que agradecer. Apenas olhava e pensava. Apenas sentia a fragilidade daquelas pessoas, eternas crianças que suplicavam. Aproximou-se de Antero. Era agora quase velho.

– Você foi o último a falar com meu pai, não foi?

– Penso que sim.

– Por que o abandonou doente e sem forças?

– Porque precisava entregar meus votos à santa milagrosa.

– A vida é um milagre, por que não cuidou dela enquanto se fazia presente no corpo do meu pai?

– Não tive culpa.

– Nem mesmo trouxe seu corpo de volta.

– Tive receio de contaminar-me.

– E aqueles que o fizeram, contaminaram-se?

– Não sei. Nunca quis saber deles.

– E continua fiel à santa?

– Sempre.

– E por que ela não evita seus problemas. Pelo que sei, eles sempre aparecem. Ainda outro dia sua filha morreu de infecção.

Aquele homem parou. Levantou-se. Saiu a caminhar por entre as ruas. Uma culpa imensa começou a penetrar seus sentimentos.

– Se tivesse socorrido Milton, com certeza minha filha estaria viva. Deixei a morte penetrar em minha vida, nas pessoas de Milton e Cristina. Antero chorou toda aquela noite. Na manhã do dia seguinte, depois de refeitas suas forças, procurou pela sua velha mãe. Sim, ela ainda era viva. A mãe o recebeu com o afeto de sempre.

– Mãe, você estava certa. Não transferimos para os santos os assuntos que nos pertencem. Sempre confiei neles as coisas que deveria fazer e nunca me senti completo e realizado por isso. Deixei que um amigo morresse sem assistência, minha filha faleceu em meus braços sem que buscasse sequer um recurso, pois que confiava que a santa iria curá-la da enfermidade. A morte veio, mãe, e a orfandade tocou-me.

A mãe tomou o filho pelos braços e o afagou.

– Sabe filho, por que ainda estou viva e beirando os cem?

– Não sei minha mãe.

– Por que confio e faço a minha parte. Os recursos existem e devemos procurá-los e os santos nos atendem falando conosco através de mensagens que propõem a sensatez, a disciplina, o amor e o trabalho. A cegueira espiritual nos torna eternos dependentes.

Selma tornou-se assistente social e foi viver as lições do bom samaritano e Antero retornou à Casa Paterna como filho pródigo suplicando a chance de recomeçar. Milton, na espiritualidade, foi ser o semeador da boa palavra a quantos existem nas zonas inferiores e a mãe de Antero foi ter com a Mãe de Jesus. Esta a aconselhou a falar com as cinco virgens descuidadas do óleo e impossibilitadas de receber seus esposos, tal qual a parábola das dez virgens contado pelo Seu Filho amado.

“O progresso é a eterna lei, os Espíritos progredirão quando a experiência lhes ensinar que o mal é a treva e o bem é a luz.”


Amália Domingo Sóler

Fragmentos das Memórias do Padre Germano - FEB – 2005 – Cap. 19



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