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Eternos Peregrinos - Capítulo 4

Justos Receituários

Todos estávamos aflitos. As notícias demoravam. Aquele mau súbito definitivamente não estava nos planos de ninguém. Margarida chorava copiosamente. Nem imaginava a perda do pai. Seria para ela o fim do mundo. A menina contava nove anos e tinha profunda ligação com aquele Espírito que sempre lhe deu carinho e atenção. Todos tentavam consolá-la, porém a garota se esquivava de todos e ia chorar no seu quarto. Talvez as preocupações maiores fossem por ela. Augusto, seu pai, já contava com mais de setenta anos e sua saúde andava um pouco em baixa, de forma que todos esperavam alguma recaída. Porém, não de forma repentina como aconteceu. Internado, as notícias eram poucas. Até o médico da família evitava tocar no assunto dizendo sempre que estavam fazendo o melhor que podiam.

Num mês de janeiro, quando Margarida completou sete anos, Augusto a levou para conhecer um local muito especial. Tratava-se de antiga propriedade da família. Era uma fazenda muito bem dirigida e equipada. Ali beneficiavam os derivados do leite além de vastas plantações de cereais. A menina ficou boquiaberta com o tamanho daquele lugar. E começou a correr por entre as gramas que a rodeavam. Depois seu pai, a convite dos proprietários atuais, a levou para conhecer o quarto onde dormia quando tinha dois anos. A menina penetrou com vagar. Em sua memória alguma coisa bateu e mesmo que em vagos relances viu-se criança ainda menor ocupando aqueles aposentos.

– Papai, eu já dormi aqui. Disse.

– Sim, minha filha. Nós moramos nesta casa quando você ainda era quase um bebê.

– Não pai. Nós já moramos aqui e eu era muito grande.

Seu Augusto nada entendeu. Achou que a filha estava brincando. Ela gostava muito de assustá-lo com histórias de fantasmas que apareciam e andavam pela casa e, de vez em quando até transmitia recados para o pai. Descrente, seu Augusto achava que a menina precisava ir a um psicólogo para acabar com aquelas coisas. Certa vez, durante uma comemoração religiosa, Margarida preferiu não sair de casa. Estava amedrontada. Dizia que muitos cavaleiros estranhos estavam na cidade para acompanhar aquela procissão. Eles vieram de muito longe e estavam felizes por ver sua santa de devoção ser adorada por aquelas pessoas que nem conheciam. E a menina não saiu mesmo de casa. Ficou no seu quarto, tremendo de medo e agradeceu a Deus quando os pais retornaram e sua mãe foi preparar o jantar.

– Eu sabia que meu pai ia ficar doente, disse a menina na véspera. E, desde então, entrou em profunda tristeza. Ouviram-na dizer para a empregada que se seu pai morresse ela morreria junto. Daí a preocupação maior ser com ela. Seu Augusto já tinha vivido uma vida inteira e ela apenas começava a sua. O dia passou e as notícias não trouxeram maiores definições.

Dois dias depois, o médico amigo da família, aproximou-se de dona Mafalda e informou que seu Augusto havia falecido. Dona Mafalda, sempre equilibrada, sofreu em silêncio e chamou os demais filhos e pessoas mais chegados, menos Margarida que estava no colégio às voltas com uma prova de ciências, matéria que ela não gostava. Aquele momento já era aguardado de forma que os preparativos já andavam adiantados. Faltavam duas horas para a menina retornar da escola e foi o tempo suficiente para que providenciada a remoção do corpo para a capela de velório e a apropriação dos documentos de óbito. Os filhos ficaram com o pai e dona Mafalda aguardou Margarida chegar. Sempre vinha em companhia de uma colega de nome Vitalina e sua mãe. Ao chegar em casa, a menina correu em direção ao nada e deu um grande abraço no vazio.

– Pai... Papai, você voltou? Que bom, estávamos todos preocupados. Venha para o meu quarto vamos conversar, estou com saudades.

Dona Augusta ficou apavorada. A reação da filha a deixou paralisada. A menina estava delirando. O pai estava morto e em breve dentro de um caixão para o devido sepultamento. Aproveitou que a filha foi para o quarto e chamou por uma vizinha. Precisava ajuda. A vizinha chamou o médico e a menina tomou alguns comprimidos que a deixou sonolenta sem a mínima condição de participar de todo aquele movimento.

Margarida cantava a música que o pai mais gostava e, meio dormindo, meio acordada, fazia carícias no nada dizendo acariciar os cabelos grisalhos do pai.

– Como você é bonito, papai. Quando eu crescer quero encontrar alguém tão belo quanto você.

A menina não dormia, porém, aqueles remédios facilitaram seu pré desligamento do corpo e ela ficou o tempo todo conversando com o pai para o espanto de todas as pessoas que se dividiam entre o velório e a vigília. No dia seguinte, às onze horas, a menina informou que o pai iria fazer uma viagem e que demoraria um pouco. Pediu para que todos ficassem tranquilos, pois que ele estava muito bem, apenas já sentia as saudades e Margarida abraçou aquele vazio e depois se permitiu repousar. Naquele mesmo momento o corpo de seu Augusto estava sendo sepultado.

Os dias se passaram. Ninguém comentava o fato na presença da menina que aguardava o retorno do pai. Na escola, quando diziam que o pai dela havia morrido ela tratava de repreender a todos dizendo que ele havia melhorado e estava viajando. Assim aqueles primeiros dias foram contornados e Margarida aquietou-se na sua infância.

Dois meses depois a menina estava lendo um livro na sala quando percebeu a chegada do pai. Deu um salto e o abraçou. A mãe veio correndo e, chorando, presenciou aquela cena insólita.

– Não posso mais ficar com você Margarida. Disse-lhe o pai.

– Por que Papai. Vai separar-se da mamãe?

– Não minha filha. Jamais me separaria da sua mãe. O caso é outro.

– O que é então, papai?

– É que preciso deixar você crescer. Enquanto estiver por perto você não vai ter forças para agir sozinha. Quando você estiver grande, uma moça, eu retorno.

– Mas papai, vai demorar muito para eu virar uma moça igual à Efigênia.

– Nem tanto assim. Outro dia mesmo eu pegava a Efigênia no colo e ela era da sua idade.

Margarida lembrou-se então que a irmã mais velha viveu grande parte da sua adolescência na casa de uma avó em outra cidade. Provavelmente também ela teve que se afastar daquele pai amigo e amoroso para poder ter forças para agir sozinha e, dirigindo seu olhar para aquele pai que tanto amava disse conformada:

– Está bem, papai. Eu vou aprender a agir sozinha e quando ficar moça você vai voltar, não vai?

– Com certeza minha filha. Dizendo isto, seu Augusto roçou levemente seus lábios na testa da filha e saiu. Margarida olhou para a mãe e disse:

– Mamãe você ouviu? Papai quer que eu tenha forças para crescer sozinha. Por isso foi embora.

Dona Mafalda enxugou algumas lágrimas e pensou em levar a filha a um psiquiatra. Não tinha mais dúvidas, a menina estava louca e nem sabia ainda da morte do pai. Tratou jeito de marcar uma consulta com o médico. No dia aprazado rumou com a filha para o consultório do Dr. Magno que já as esperava. A menina não sabia por que estava naquele local. Não sentia dor nenhuma e estava muito feliz. Suas notas eram ótimas, inclusive as notas de ciência e sabia que estava crescendo normalmente como as outras crianças. Aquele médico fez os exames de praxe e depois começou a conversar com Margarida a respeito do pai. A menina contou tudo o que sabia e o médico ficava cada vez mais pensativo. Depois de várias perguntas e respostas a menina o informou que uma senhora de cabelos brancos estava ali também no consultório. Ela se chamava Maria da Paz e estava muito contente com ele, o seu “palinho”. Dr. Magno deu um salto da cadeira. Maria da Paz era sua avó, falecida a mais de vinte anos e “palinho” era como o chamava.

Aproximou-se da menina e suplicou:

– Ela está dizendo mais alguma coisa?

– Sim, ela diz que o Sr. Tancredo, seu avô, já renasceu e que ela não demora também e que vai ser filha da Mônica. Agora Dr. Magno deu um grito e deixou que lágrimas caíssem dos seus olhos. Mônica era a filha de casamento marcado para breve. O médico abraçou a menina e afagou seus cabelos. Dona Mafalda ficou mais uma vez apavorada e pensou alto:

– Santo Deus, o psiquiatra é tão louco como a minha filha!

Aquele médico passou uma receita para a mãe aflita. Levar Margarida imediatamente para uma casa espírita. Ela precisava alinhar e cuidar da sua abençoada mediunidade.

Hoje Margarida está com vinte e cinco anos e sempre vê o pai querido. Sua mãe e irmãos pouco se interessam pelas suas atividades mediúnicas e nem se lembram mais do ocorrido no dia do falecimento do pai. Aquela médium, consciente dos seus compromissos, atende centenas de pessoas semanalmente dando consultas gratuitas dos médicos espirituais para suas enfermidades. E eu fico aqui pensando: e se aquele médico tivesse mandado internar aquela criança e ter receitado medicamentos entorpecedores do seu sistema nervoso? Ainda bem que soube ser tocado pelas verdades eternas. Dr. Magno é o presidente da casa espírita e Adélia, sua neta, está com doze anos e já trabalha evangelizando crianças de cinco. Tem, na mocidade, certo adolescente de nome Paulo que é muito seu amigo e olha muito para sua neta!

Eu fico pensando: é o ciclo natural da vida oportunizando a todos crescerem para Deus.

“Ser médico é tornar-se taumaturgo – ser apóstolo

e santo, acender nos corações bruxuleantes

de fé o lampadário da esperança

e devotar-se ao bem...”

Victor Hugo

Do Calvário ao Infinito, FEB, 1987 – L. 7 Cap. 2

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