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Eternos Peregrinos - Capítulo 10

O Enterro de Maraina

Tia Maraina enfim morrera. Ufa, que alívio! Em todos os lugares daquela pequena cidade as pessoas estavam felizes. Nunca um enterro foi tão comemorado. Todos fizeram questão de ir, não para chorar como de costume, mas sim para glorificar a morte e suas limpezas necessárias. O velório foi regado a fino vinho e muitas comidas gostosas. Um banquete foi servido na porta da casa do cadáver, às onze horas da manhã e todos puderam comer e beber à vontade.

Naquele dia, coincidentemente, passava por ali um caixeiro-viajante. Ele vinha de uma tradição ferrenha quanto a assuntos de funerais. Na sua infância os mortos eram enterrados ao som de carpideiras, bandas de músicas e suas marchas fúnebres. Coroas de flores, badalos tristes dos sinos da igreja e um choro de criança, nalgum canto, que cortava o coração. Portanto, não entendia nada do que estava acontecendo. A princípio achava que as normas naquela cidade eram aquelas mesmas, quando, de repente lembrou-se de outro funeral que houvera assistido ali, tempos atrás. Manoel Servino, por não entender o que se passava e não podendo trabalhar pela falta de comerciantes compradores, achou por bem assentar num banco da praça e pensar.

Analisava a morte. Que presença era aquela? A quem ela representava? Seria Deus? Porém o Deus que pregavam era diferente. Era Amigo, Pai, Criador, Protetor. Como, de repente, mandava para o fundo da terra um dos seus filhos “amados”? Sim, o nosso bom vendedor nunca havia parado para pensar na morte.

– Engraçado, pensava ele, todas as mortes que conheci trouxeram tristezas e esta aqui está trazendo alegria!

Teve uma vontade enorme de ir à casa do velório e perguntar para aqueles beberrões e comilões festeiros o que se passava. Porém lembrou-se de velha frase da mãezinha, também já morta:

– Manoel, quando estiver num velório, tenha muito respeito. Não se aproxime do caixão a não ser para uma reza e despedidas.

Bem, este não era o caso. Não conhecia quase ninguém dali e com certeza o defunto ou defunta também não. Rezar para um desconhecido morto e tão estranho quanto despedir-se do mesmo. Assim, de pesares em pesares, nosso amigo permitia que o tempo passasse e que as pessoas festejassem o falecimento do insondável desconhecido.

Lá pelas tantas, por volta das três, apareceu um caminhão e nele vinha uma banda de música com músicos e seus instrumentos. Foram saudados efusivamente pelos amigos e parentes do morto.

– Pelo menos vamos ter marcha fúnebres, pensou o intrépido Manoel Servino.

Os músicos desceram do caminhão, junto veio um ator vestido de palhaço e trazendo nas mãos um grande livro preto e na capa podia se ler:

“Anotações dos Defuntos mal Desejados”.

A banda posicionou-se defronte à casa, instantes depois o caixão preto, coberto por lamas e fungos surgiu à porta trazido por quatro homens absolutamente embriagados. E todos eles cambaleavam e o caixão quase ia pelos ares. Ao assomar a porta, pararam. Todos fizeram um silêncio sepulcral. O ator, vestido de palhaço, aproximou-se e ficou no meio da roda de dezenas de curiosos bem defronte ao caixão:

– Aqui estamos para encomendar a alma desta defunta.

– Amém. Todos responderam.

– Esperamos que ela seja bem recebida no lugar que bem merece.

– Amém

– Esperamos que de lá não saia nunca mais ou, se sair, que o faça quando o mundo todo virar um grande buraco e somente ela esteja viva para ser comida por inteiro.

– Amém... Amém... Amém.

Uma salva de palmas surgiu naquela roda de pessoas. Manoel Servino achou por bem aproximar-se um pouco daquele evento estranho e inusitado. O ator continuou sua encomendação daquela alma, provavelmente já penada.

– Das profundas surgiu um dia entre nós. Para as profundas devolvemos todos nós com alegria nos corações. Viveu e comeu as raízes cozidas e temperadas desta cidade, agora vai comer outras raízes só que cruas e barrentas dos fundos dos abismos. Andou feito um cão sem dono, fedido e agourento, agora vai apodrecer esticada, sem poder se mexer e sentindo no corpo o frio da morte...

O ator falou por aproximadamente uma hora sob os olhares e ouvidos atentos de todos que, de vez em quando davam urras de alegria e aprovação. Enquanto isto, o vigário-geral, tirava uma soneca em sua residência paroquial. Ainda teve tempo para rever os escritos do Sermão do Monte e se inundar daquelas luzes que dali emana.

Ao final da fala do ator, as pessoas fizeram fila de dois, o caixão ficou no meio e a banda de música posicionou-se atrás. Ao toque da batuta do seu maestro puseram-se a tocar alegres e festivas marchas de carnaval e pierrôs, arlequins e colombinas surgiram de outras casas e o cortejo-festejo andou por todas as ruas da cidade sendo saudado efusivamente por gestos de “já vai tarde” daqueles que se encontravam nas janelas ou portas de suas casas. Os sinos da igreja começaram a repicar alegremente como quem saúda uma data muito festiva.

Antes do enterro, porém, fizeram a partilha da herança daquela infeliz criatura. O Juiz do lugar leu o testamento e cada pessoa que recebia sua parte ia depositando num local reservado. Eram móveis velhos, retratos pestilentos, colchões abarrotados de dinheiro vencidos ou não, roupas velhas e mofadas, vasilhame preto de nunca ter sido lavado, restos de alimentos infestados de ratos e insetos e muitas cartas escritas e não enviadas. Fizeram uma grande fogueira com tudo. Depois atearam fogo naquela casa cheia de miasmas antigos e novos. Enquanto as chamas crepitavam o fogo purificador levava consigo os restos impuros daquela vivenda. Ao fim colocaram no local uma placa impedindo que qualquer outra construção fosse ali erguida. O local entraria em repouso para as devidas recuperações por no mínimo dois séculos.

Na prefeitura, o prefeito recebia toneladas de e-mails, telegramas e mensagens fonadas que vinham de todas as partes do mundo, felicitando-o pela morte daquela cidadã indesejável.

E lá se foi para o cemitério aquele estranho cortejo. À medida que passavam pelas ruas, todos os moradores engrossavam suas fileiras e dançavam e cantavam alegremente e o caixão caia e rachava e outros bêbados o pegavam e tudo ficava cada vez mais estranho. A zombaria era infernal, premeditando para a defunta o seu próximo pouso.

– Tem mesmo alguém dentro daquele caixão? Perguntou-se Manoel Servino. Uma voz vinda de algum continente do além soltou uma gargalhada estridente em seu ouvido e respondeu:

– Tem sim, ora se tem, e como tem! E aqui estamos nós aflitos pela sua chegada!

O nosso herói das observações levou um grande susto. E o cortejo se foi e sumiu além. Nosso caixeiro-viajante naquele dia resolveu não vender nada, não oferecer nenhum gato por lebre, nenhum melado por mel, nenhuma bijuteria por joia. Reviu seu cardápio de mentiras, suas posturas de velha raposa, seu tilintar de ouro mau ganho. Seus lenços de papel imitando seda, seus tecidos de chita imitando veludo. Sentiu-se bufão e galhofeiro sedento do nada que entorpece sentimentos, que obscurece verdades, que abre abismos enormes entre pessoas. Juntou seus velhos pertences na sua velha e sebenta mala de viagem e foi rever seus enganos.

​A lição havia sido muito clara. Cada um tem a morte que bem merece.

“O supremo objetivo do homem, na Terra, é o da própria renovação. Aprender, refletir e melhorar-se, pelo trabalho que dignifica – eis a nossa finalidade, o sentido divino de nossa presença no mundo.”

Martins Peralva

Mediunidade e Evolução- FEB - 1992 –Cap. 3

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