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Eternos Peregrinos - Capítulo 11

O Poema

Chovia muito. As tardes com chuva naquele lugarejo eram tristes demais. Não ofereciam nenhuma perspectiva de vida abundante. As pessoas se recolhiam aos seus afazeres ou aos seus cobertores. Os pássaros não cantavam e nem o Seu Antunes do cavaquinho, emitia seus sons alegres. Eu, contudo, adorava o cadenciar dos pingos d’água que caíam de manso das goteiras. Para mim o espetáculo era gigantesco. Do fundo de minha alma emergia uma canção que talvez houvesse sido cantada há séculos por pessoas muito diferentes daquelas que ali se encontravam à minha volta. Às vezes a métrica de um poema escrito ou por escrever tomava conta de mim, enaltecendo o ato de viver. E eu sentia muitas saudades de um tempo que ficou por resolver. Era profundo aquele sentimento. Nunca conseguia entendê-lo. Quando as lágrimas se apresentavam para cair eu as continha, recompondo as emoções. Nunca gostei de pessoas choradeiras. Pode-se chorar sim, mas a seu tempo e à sua hora, como aquela que aconteceu no dia em que o Dr. Ferdinando nos deixou, abruptamente, por um infarto. Era uma criatura divina que cuidava de todos os doentes. Não se preocupava se receberia ou não pelos seus serviços. Ajudou centenas de pessoas. Todas ali, abaixo de vinte anos, haviam nascido pelas suas mãos abençoadas. E todos choramos e muito. Meu pequeno Adolfo também nasceu pelas suas mãos.

Eu era sozinha. Marinaldo havia abandonado o lar que morávamos. Uma jovem de apenas quinze anos resolveu encantá-lo com seus dotes primaveris. Não o disputei com ela. Não havia necessidade. Escolhas são escolhas. Permaneci sozinha. Trabalhava de costureira e com o que ganhava mantinha minha casa e meu filho que nunca foi procurado pelo pai. Porém, não me senti vítima. Não gosto do vitimismo tão ao sabor da maioria.

Resolvi deixar a religião de lado. Vejam bem: a religião, não a Deus. Procurava entender-me com Ele da maneira que podia e, de certo modo, acho que me dava bem, pois tínhamos saúde e nada nos faltava.

Naquela tarde chuvosa, quando tudo parecia nos levar a um ocaso quase fúnebre, aconteceu algo inesperado. Bateram à porta. Fui atender. Adolfo estava no seu trabalho. Era funcionário do Empório Central. Apressei-me. Com certeza a pessoa estava molhada pela chuva. Quando abri deparei-me com uma mocinha de dezesseis anos aproximados. Não a conhecia. Ela me olhou com olhar de piedade. Foi o bastante. Convidei-a para entrar.

A jovem tirou seu casaco molhado e dei a ela uma toalha para se enxugar e também uma xícara de chocolate bem quente. Ficamos muito tempo sem trocarmos uma só palavra. Éramos duas desconhecidas numa tarde chuvosa assentadas num banco de cozinha sem emitirmos nenhum som, nenhuma pergunta, nenhuma justificativa.

– Meu nome é Tatiana. Sou de Loureiro Santos. Tenho quinze anos, quase dezesseis.

Loureiro Santos era uma cidade próxima que ficava a uns cinquenta quilômetros dali. Quase não ia lá. As costuras eram muitas e não me sobrava tempo para idas e vindas a outras localidades.

– Sou Margarida. O que deseja?

– Abrigo, senhora. Meus pais me expulsaram de casa. Nem mesmo deixaram que trouxesse minhas roupas. Estou sem nada, apenas com esta que vê.

Olhei aquela menina infeliz e indefesa. O que fazer por ela? E seus pais, por que a expulsaram? Qual teria sido o seu delito tão grave assim? Não tive vontade e nem coragem de perguntá-la.

– Aceite-me, por caridade. Disse com voz embargada. Serei sua auxiliar. Também aprendi a costurar e a bordar. Minha velha avó falecida ensinou-me desde que eu era criança.

Como ela sabia que eu costurava? Como acolher uma desconhecida? Porém alguma coisa em seus olhos me era familiar. Algum tipo de sentimento flutuava em mim necessitando explicações.

– Não posso fazer isto. Aqui em casa temos apenas dois quartos. Um meu e outro do Adolfo, meu filho, também jovem como você. De sorte que não tenho onde aloja-la. Acho muito perigoso um moço e uma moça que não são irmãos morarem numa mesma casa. De repente...

– Já aconteceu, senhora.

Calei-me. Minhas secularidades tornaram tudo muito claro. Eu ia ser avó. O que dizer para aquela promessa de vida, que trazia em seu ventre um embrião que necessitava nascer para ver as gotas de chuva que caíam nas tardes tristes daquele lugarejo, fazendo de tudo uma poesia? Levantei-me e a abracei afetuosamente. Choramos como velhas amigas. Acariciei suas faces virgens, seus olhos que espelhavam a ternura de uma alma que também como eu, vinha de longe. Afaguei seu ventre. Dei boas vindas àquele ser que vinha de Deus. Adolfo chegou e nos viu assim abraçadas. Juntou-se a nós e os três choramos as alegrias de um grande reencontro.

Gigantesca tela se abriu em nossas mentes e nos vimos digladiando numa arena de sangue por causa de brasões familiares desonrados. Quem era quem ali? Não interessava. Éramos quatro e estávamos de novo juntos e, agora para compormos uma só família. Demos as mãos. Tatiana ergueu seus olhos límpidos aos Céus e apenas disse:

– Obrigada Jesus!

O poema que meu neto escreveria no futuro começava a receber ali os seus primeiros versos.

“O perdão será sempre profilaxia segura, garantindo, onde estiver, saúde e paz, renovação e segurança.”

Emmanuel

Pensamento e Vida - FEB - 2006 –Cap. 25

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