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Eternos Peregrinos - Capítulo 13

Fecundação

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Todos já haviam ido para as festas. Naquele lugarejo, por ocasião das comemorações das colheitas, as pessoas, eufóricas, deixavam suas casas nas pequenas propriedades rurais e encaminhavam-se para a pequena cidade de Ab-Jansir. Os deuses locais seriam homenageados. Danças e hinos, sacrifícios e oferendas e, ainda, alianças conjugais seriam seladas. Era um momento ímpar para aquelas pessoas que se isolavam durante todo o ano em seus casebres, alinhavando pobrezas e sonhos.

Malvina havia completado quatorze anos. Época propícia para encontrar o par e construir com ele um novo lar e ter filhos e permitir que a vida cumprisse sua parte nos contextos de cada um. Ela havia aguardado aquela data com muita expectativa. No ano anterior sua prima Justina havia encontrado um belo rapaz e casaram-se dias depois, numa cerimônia simples, mas que encheu os olhos de Malvina. Ano seguinte seria ela. Estaria nos braços de alguém e dançaria com ele nos folguedos dedicados aos noivos. Nada mais justo, era o caminho natural. Em seu pequeno baú já constavam algumas peças costuradas e bordadas. As restantes viriam com o tempo. Ali podia se ver um pano para cobrir a cama, outros para enxugar o corpo, outro ainda para cobrir a mesa. Eram brancos, feitos de algodão cujos fios foram tecidos no tear manual de dona Felícia. Era o bastante. Malvina estava preparada, seu coração juvenil ansiava por aquele encontro.

E ela se aprontou com esmero. Tomou longo banho no rio, penteou-se. Vestiu uma roupa costurada pela mãe antes de morrer. Era a roupa própria para chamar a atenção do noivo. Bem grande, até os pés, rodada, drapeada, pequeno decote, apenas o necessário para Malvina sentir-se mulher. As mangas terminavam em elásticos que as tornavam fofas e atraentes. O conjunto combinava com sua pele morena e seus cabelos negros. Os olhos eram ligeiramente esverdeados e as mãos lisas com unhas aparadas e bem cuidadas. Era, pois, o sonho de qualquer noivo.

Faltavam apenas dois dias e as carroças já estavam preparadas, os animais escolhidos e a alegria era contagiante entre todos. Havia as velhas que iam para lembrar. Os velhos que iam reencontrar amigos e fazer outros, os homens e mulheres adultos que levavam seus filhos para ensiná-los ou inicia-los nos rituais das oferendas. Até o pai de Malvina pensava em encontrar uma substituta para a mulher falecida. Entre preparativos e sonhos, expectativas e ansiedades não perceberam que alguma coisa de diferente estava acontecendo naquele vale. Os animais andavam ressabiados, não queriam comer direito. Parece que premeditavam alguma coisa fora do normal. As flores estavam mais vistosas, as tardes eram mais bonitas, o pasto mais verdejante e os alimentos mais deliciosos, embora cozidos pela mesma forma de sempre.

Um realejo surgiu na vila e sua música enchia de graça aquelas pobres vivendas. Davam-lhe o de comer e vestir e o abrigavam em pequenos celeiros. Certa noite, quando a lua bailava soberana nos céus, aquele homem de paz, cantou a chegada de um príncipe.

– Um príncipe? Perguntava-se Malvina. E pensava se era mesmo necessário ir ao lugarejo para encontrar alguém. O homem cantava e sorria e não sorria apenas para ela, sorria também para as casadas, as velhas, os homens e crianças.

– Um príncipe para toda esta gente? Um príncipe é apenas para uma princesa e que seja nova como eu, argumentava Malvina para si mesma.

À noite, na véspera da partida, aquele rouxinol aproximou-se da menina e convidou-a para uma conversa. Uma conversa feita de músicas. Malvina aquiesceu. Estavam na porta da sua casa e o cantor era velho e não ameaçava ninguém, muito menos ela, uma criança na sua presença. O cantor dedilhou seu instrumento, cantou e depois lhe disse com ar de amigo confidente:

– Também você vai à procura do seu par?

– Sim. É tradição. Eu necessito casar e ter filhos e doa-los para os trabalhos dos plantios.

– E se você quebrasse a tradição?

– Eu? Quebrar a tradição? Não posso. Nada conheço. Nada posso oferecer além.

O realejo aproximou suas mãos do peito daquela menina e, de repente, Malvina sentiu-se iluminar e transportou-se para outro reino. Desapareceram as vivendas, as colheitas, os rituais, as tradições. Sentiu-se livre. Sentiu a paz que imaginava ser dos deuses e lá, vindo de muito longe, um ser de azul safira aproximava-se sorrindo.

– O príncipe nasceu no mundo. É feito filho de pessoas simples. É criança, é amor, é esperança, é o representante de todos os reinos.

– Mas, é apenas criança ainda. Necessito um homem já feito, respondeu Malvina.

– Um homem é simples, apenas fecunda a carne. Este príncipe é magnífico e fecunda a alma.

– Não entendo...

– Deixe que ele fecunde a sua alma. Quebre as tradições, voe mais além.

Tudo voltou ao normal. Malvina olhou para o realejo que ainda cantava e sorria.

– Onde posso encontrá-lo? Perguntou.

– Ele virá até você. Aguarde.

Dito isto, levantou-se e saiu tocando e cantando e desapareceu nas pequenas trilhas que davam acesso ao vale. Malvina olhou para o céu e viu a lua e viu estrelas que se deslocavam e bailavam formando sinais. Depois desenharam uma seta e a direcionaram para a menina sonhadora. E Malvina percebeu que pequenas gotas daquelas estrelas caíam sobre si e, ao tocá-la, inundavam-na de alegria e esperança e sentiu um amor que não poderia receber de ninguém.

– Cumpra teu dever. Estaremos juntos para sempre. Malvina ouviu uma voz suave dentro do peito.

No dia seguinte preferiu ficar em casa, foi ajudar muitas pessoas que já não podiam mais caminhar, que já traziam em si as marcas de profundas enfermidades físicas e espirituais. Malvina começou a tocá-las e viu que as luzes daquelas estrelas desprendiam das suas mãos e as pessoas sentiam-se reconfortadas e sorriam. Desceu até a casa de um velho temido por todos porque era portador da lepra. Levou-lhe alimentos e sorriu-lhes. Soprou suas feridas pustulentas e o velho, agradecido, reconfortou-se e se foi feliz. Daquele dia em diante, as pessoas não mais iam à cidadezinha reverenciar seus deuses. Ali estava a deusa de todos eles.

Passados mais de trinta anos, chegou de novo um realejo naquele lugar. Procurou por Malvina e entregou-lhe a uma mensagem enviada por um grande príncipe. E nela estava determinado:

– Continua apascentando minhas ovelhas.

Malvina rejubilou-se e, naquela noite, a lua de novo pairava soberana nos céus. A pastora aquietou-se junto à porta da antiga vivenda e lembrou-se daquele cantor antigo que havia lhe tocado a alma. De novo seu peito iluminou-se e as casas, plantações e colheitas desapareceram e agora quem surgia era ele ainda com seu realejo e disse-lhe com o mesmo sorriso:

– Viu, é possível quebrar tradições!

Malvina havia sido fecundada na alma. Deixou o comum e viveu o inesperado que a visitou e viveu repleta do novo e viu que era possível ser feliz assim.

“Jesus é o guia divino: busque-o!”

Victor Hugo

Sublime Expiação - FEB - 1998 – L. 3 - Cap. 5

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