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Eternos Peregrinos - Capítulo 15

A Dívida

Faltavam quinze dias para que a dívida fosse paga. O credor não admitia atrasos. Era severo. Cumpria rigorosamente com seus deveres e exigia o mesmo das pessoas. O dinheiro necessitava chegar às suas mãos para encaminhá-los para outros compromissos já assumidos. Assim vivia assim havia passado os quase setenta anos da sua existência. Aqueles que não cumpriam seus tratos eram entregues ao Juiz e este dava o destino certo: a prisão ou em alguns casos a forca. Era essa a legislação. O devedor, contudo, não conseguira até aquela data juntar todo o dinheiro. Estava apavorado. Havia tomado emprestado para cuidar da saúde de sua velha mãe. Teve que transporta-la até Londres onde havia um médico afamado. Tudo em vão. A pobre senhora acabou mesmo por falecer, embora todos os cuidados. Janfer tinha ainda esposa e três filhos, sendo dois deles paraplégicos de nascença. A esposa, quase sempre enferma, mal podia cuidar dos afazeres domésticos e Janfer trabalhava no porto onde era empreiteiro e somente contratado quando os serviços do seu ofício surgiam. Desolado, procurou o empregador. Este o ouviu atento e pediu que retornasse à noite, trazendo a mulher, filhos e o que tinha. Não deu maiores explicações. Era homem de poucas conversas e muitas ações. Tudo era devidamente premeditado. Sem muitas escolhas, Janfer cumpriu o que lhe foi determinado. À noitinha lá estava ele conforme lhe havia sido solicitado. – Está vendo aquela embarcação? Aquela de velas já içadas? – Sim. Estou vendo. – Esta noite mesmo ela vai partir para terras distantes. Entre nela com tudo que é seu. Chegando ao destino procure por Arnoud de Telles e diga-lhe que eu o enviei. Ele vai lhe dar serviços e morada. Já entreguei ao comandante a carta com as devidas apresentações. Era a solução que se apresentava. Fugir. Sim, Janfer estava sendo convidado à fuga. – Não pode me emprestar o valor que devo? Trabalho em dobro. Pago centavo por centavo. – Não. Preciso de você em outro lugar. Aqui o serviço é findo. Se ficar, ficará desempregado e lá há muito trabalho. – Mas não terei tempo para resgatar minha dívida, considerou Janfer.


– É o que posso oferecer, falou aquele homem de feições rudes e atos decididos. Janfer ficou apavorado. As grandes lições que havia recebido de sua mãe resumiam-se na honestidade para que fosse respeitado. A embarcação não demorava a partir. O comandante aproximou-se dele e o convidou a entrar. Parecia ser pessoa de bem. Se o conhecesse antes, com certeza, propor-lhe-ia trabalho duro e pesado em troca do dinheiro para o pagamento da dívida. Janfer percebeu que era homem de poucas conversas. Olhou para a esposa e os filhos que suplicavam o direito à vida. Aquele devedor viu pequena capela construída para os marinheiros. Correu até ela. Era ainda um recurso não procurado. Entrou. Ajoelhou-se. Lá no alto existia um crucifixo onde Jesus estava crucificado. Um símbolo próprio para relembrar ao homem o seu sacrifício em prol da redenção humana pelo trabalho e pelo bom exemplo. – Senhor, como posso me redimir fugindo? Devo e quero pagar. Não usei o dinheiro para coisas fúteis e tampouco improfícuas. Usei-o para cuidar da minha santa mãezinha doente e em sofrimento. Os trabalhos escassearam de modo que não consegui juntar o suficiente. Meu credor, por justiça, necessita receber o que lhe pertence. Um apito da embarcação despertou aquele homem das suas reflexões. Não tinha nem tempo nem escolhas. O crucifixo jazia imóvel como que não querendo escutá-lo. Janfer levantou-se e chorou copiosamente. Não tinha mais o que fazer ou tentar. Se ficasse, seria preso e talvez morto e sua família terrivelmente afetada. Talvez sua mulher e a pequena filha de dez anos teriam que entregar-se à prostituição. Era a única forma de conseguir dinheiro para cuidar dos dois meninos, deficientes físicos. – O Senhor deve ter seus motivos para continuar inerte e calado. Perdoe-me pela ousadia de contar-lhe meus problemas. Mesmo assim ainda ouso pedir: cuide de mim e dos meus. Cuide também do Sr. Tenório, meu credor. Necessitava ser rápido, caso contrário perderia o emprego que o aguardava em outras terras. Aproximou-se dos seus e tomando os poucos pertences que tinham rumaram para a embarcação cujo comandante já os aguardava impaciente. – Temos que aproveitar os ventos! Na manhã de dois dias seguintes ancoraram em um porto muito movimentado. Janfer não tinha idéia de onde estavam. Pouco depois outro senhor aproximou-se e lhe disse: – Acompanha-me. Três dias depois estavam instalados em pequena, mas aprazível vivenda. Tinha cômodos para o casal e outro para os filhos além de pequeno salão e cozinha separada. Era um


sonho. Jamais pensara em viver num local como aquele. Ao fundo havia uma bica que facilitava o acesso à água. Havia também um pequeno jardim na entrada e árvores em derredor além de pequeno riacho que corria mansamente à procura de um grande rio. O trabalho era farto. Por muito tempo ficaria por ali e o homem que o contratou era de feições suaves e amigas. O tempo passou. Janfer, contudo, não era feliz apesar de sua filha estar crescendo e já trabalhar na casa do seu empregador. Cuidava de duas crianças pequenas, filhas daquele homem acolhedor. Os meninos haviam crescido e estavam muito bem adaptados à nova vida e sua esposa melhorara consideravelmente, pois o clima favorecia sua parca saúde. Conseguiu ajuntar duplicadamente o dinheiro que devia ao senhor Tenório. Desejava retornar e pagar sua dívida. Temia, contudo por alguma ordem de prisão ou morte. Não tinha como comunicar-se com ele. Não conhecia sua família e nem mesmo se tinha filhos. Não sabia nada dele. O dinheiro lhe foi passado numa vivenda rústica que funcionava como escritório daquele emprestador de dinheiro a altos juros. Uma noite teve um sonho. Numa estrada ampla e larga uma carruagem diferente circulava velozmente. Nela, um homem absolutamente desnorteado dirigia o veículo para um abismo próximo. Ao perceber o perigo, postou-se defronte aquele veículo num ato de coragem. O homem brecou o carro e gritou-lhe impropérios. – Senhor, cuidado. Ali na frente há um enorme abismo onde fatalmente vai cair e morrer. Aquele homem desceu do carro, abraçou-o agradecido. – Por que está cuidando da minha vida colocando a sua em risco? – Porque sou um devedor. Enquanto não pagar minha dívida estarei peregrinando pelas estradas salvando pessoas. – Quanto deve? – Muito, mas já tenho o bastante e o dobro para cobrir os juros. – Então pague! – Tenho receio de ser tarde e já ter sido condenado. O sonho se desfez. Era manhã, Janfer acordou suarento e mais que nunca, entristecido. Bateram à porta. Correu par atender. Era o antigo empregador da antiga cidade. – Vim lhe trazer isto. – Do que se trata? – Seu mandado de prisão. Pediram que o entregasse.


Era melhor que fosse assim. Sua mulher estava bem melhor e já podia tecer e cuidar dos meninos doentes e a menina já estava mocinha e certamente encontraria alguém que a fizesse feliz. Abraçou os quatro e despediu-se. – Leia-o. Falou o antigo empregador diante daquele quadro familiar de grande emoção. Com dificuldades soletrou palavras que diziam: Está livre! – Como? – Eu paguei sua dívida. – O senhor? Sim, quando o navio zarpou apareceu-me um homem robusto e saudável que me ofereceu recursos para aprimorar e estender meus negócios. Parecia alguém vindo de outros tempos, de outras civilizações. Aceitei a oferta e meus negócios prosperaram. Certo dia apareceu-me de novo e disse: – Pague a dívida daquele homem. Procurei por Tenório e acertei com ele. O mandado de prisão foi abolido e agora já não deve mais nada. – Devo sim. Respondeu Janfer que chorava e olhava para seus filhos e sua mulher. Devo a Deus o favor de ter enviado o homem que o fez prosperar. – Mas, esta dívida é minha. Hoje sou rico. De quem afinal, era a dívida. De Janfer ou de Saulo, o rico?

“O auxílio prestado desinteressadamente aos outros, nas lutas da Terra, é investimento de paz e vitória, felicidade e luz, para a glória do céu.” Espíritos Diversos

Correio Fraterno - FEB – 2004 – Cap. 3

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