top of page
  • Foto do escritorGRESG

Eternos Peregrinos - Capítulo 16

Civilizações Adormecidas



Repentinamente o salão ficou todo escuro. Havia pessoas esperando pelo desfecho daquele evento, necessitavam ir. Havia aqueles cujos horários de voos estavam marcados. Não era possível o atraso. Os responsáveis procuravam minimizar o início do caos. Existem pessoas que não suportam ser contrariadas e ali estava Raquel Medeiros, de sessenta e cinco anos, conhecida dama da sociedade, que não aceitava ser importunada por aquilo que não lhe convinha. Uma agitação se estabeleceu. Eram vinte e duas horas e não entendiam o porquê do fato uma vez que todo o prédio continuava com suas luzes acesas.

– Deve ser o disjuntor, disse alguém com conhecimento na área.

– É, mas se for o disjuntor ele apenas nos protegeu de um mal maior, retrucou outro.

Choros de crianças e empurrões começaram a acontecer. Eram em número de cento e cinquenta os participantes daquele lançamento de livro.

– Bem que eu não queria vir. Não gosto destes assuntos. Falou Meyre Silva, adjunta da Faculdade de Ciências Exatas.

– Precisamos saber de tudo, respondeu seu marido, o conhecido sociólogo Campos Neriva.

Cada qual emitia seus conceitos e opiniões sobre o que estava acontecendo. Num canto do salão encontrava-se o Professor Seleto de Medeiros. Era um homem ponderado, de atitudes controladas e que jamais alterava seu humor. Sempre sorridente, cortes, amigo e com respostas sensatas para todas as questões que surgiam. Ficava quase sempre isolado. Era procurado apenas em últimos casos. Nem sempre suas conversas agradavam, nem sempre seus conceitos iam ao encontro da maioria. Mas era um grande cidadão e não deixava de comparecer a nenhum evento para o qual fosse convidado. Conhecia de longa data o escritor. Por várias vezes entabularam conversações proveitosas no banco da praça principal daquela cidade. Xisto Silva, o autor, era aficionado por Discos Voadores e os mundos habitados. O Professor Seleto de Medeiros se deleitava com suas divagações.

Os responsáveis pelo evento ainda se encontravam às voltas com o transtorno da falta repentina da energia elétrica quando Raquel Medeiros deu um grito estridente e caiu desmaiada no chão daquela sala escura. Era muito gorda, por isso levou alguns com ela em seu tombo. Ninguém se machucou, mas a dama social perdeu os sentidos. Apareceram velas, isqueiros e até lampiões. Ao olharem para a dama do chão assustaram-se com suas feições. Era conhecida por ter uma pele grossa, lábios quase inchados, olhos esbugalhados, nariz protuberante e sobrancelhas terrivelmente densas. Os cabelos eram amansados à custa de shampoos, grampos e até lenços quando se rebelavam ainda mais. Algo estranho havia acontecido: Raquel Medeiros transformou-se completamente. Era jovem, moça de seus vinte e cinco anos, bela e suave.

Engraçado quando não se prepara para o inusitado. As reações são as mais estranhas e pitorescas. Ali, as pessoas em círculo, começaram a afastar-se também em círculo e Raquel ficou no meio do salão. Todos estavam assustados com o fato, menos o escritor e o Professor Seleto de Medeiros que continuava no seu canto saboreando gostoso creme com frutas.

Para espanto geral Raquel Medeiros moça, levantou-se. Olhou as pessoas à luz daquelas velas e lampiões. Caminhou com desenvoltura por entre eles como que tentando reconhece-los. De repente foi dando nomes diferentes a cada qual. Eram nomes estranhos vindos de alguma cidade morta, enterrada com suas gentes, seus costumes e nomenclaturas. As pessoas atônitas se entreolhavam e se perguntavam o que estava acontecendo. Naquele brutal silêncio as respirações, às vezes ofegantes, eram enormes assovios daquelas almas inquietas.

– Sou Unitah, conheço todos vocês. A voz era delicada.

A moça ergueu as mãos e, de repente, pequena harpa surgiu por entre elas. Dedilhou-a com maestria. Sua voz ecoou pelo salão. Era uma música terna cantada numa língua morta ou adormecida, mas que todos puderam entendê-la pelas vibrações e sorrisos da artista. Depois se aproximou de Breno Sólon, a quem deu o nome de Stanhá e cantou e tocou apenas para ele. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Breno Sólon era viúvo e vivia chorando a morte da esposa amada ocorrida a cinco anos. Unitah não se preocupou e tampouco se perturbou com o espanto daquele senhor. Continuou tocando a sua harpa e inebriando corações com sua melodia. Olhou em direção à mesa onde se encontrava o autor, dirigiu-se a ele, ajoelhou-se e fez profunda reverência, parando um pouco o seu cantar. Salve Pachint. O autor, como que entendendo a razão daquele nome estranho, sorriu e agradeceu e também se ajoelhou e beijou as mãos da donzela casta. A harpa e o cantar recomeçaram. Unitah passou por todas aquelas pessoas absolutamente perdidas e trêmulas, cujos sussurros eram o do engolir seco e uma vontade enorme de saírem correndo dali amedrontados. Eram crianças nervosas e indefesas e paralisadas ante o que estavam presenciando.

Professor Seleto de Medeiros ainda continuava saboreando seu creme com frutas quando a jovem da civilização esquecida se aproximou dele.

– É servida Unitah? Perguntou-lhe e a jovem acenou que sim. O Professor de oitenta e cinco anos pegou um pouco do creme numa outra colher que se encontrava à disposição e levou-a aos lábios da moça. O espanto geral foi maior ainda e as pessoas não mais respeitaram o ambiente e se olhavam e comentavam e condenavam e engoliam a seco e julgavam, pré julgavam e quase tudo voltou ao normal quando se tem um evento num grande salão repleto de convivas.

A quase menina moça, agradeceu ao Professor e foi lentamente retornando ao local aonde chegou. As pessoas foram silenciando até formarem de novo o círculo e a moça deitou-se no chão e a harpa desapareceu. Um vento muito forte soprou apagando as velas e até mesmo o lampião. Tudo ficou escuro. Segundos depois a luz retornou e Raquel de Medeiros acordou, blasfemando, gritando impropérios por estar assim estirada no chão, justo ela, a grande dama da sociedade. Ninguém ousou levanta-la. Estava ainda mais feia, portava agora enorme mancha escura na face direita.

Com muito custo reergueu seu corpo de cento e vinte quilos. Andou pesada, claudicando, empurrando, injuriando e se foi embora para o avião e sua vivenda na encosta além de todos os mares, para viver de novo suas rabugices. E como, tinha o hábito dos esquecimentos de coisas úteis, deixou para trás o livro que havia adquirido e que estava autografado pelo amigo de infância. Outros fizeram o mesmo, uns levaram seus livros outros os esqueceram. No fundo não queriam ter lembranças daqueles acontecimentos.

Ficaram apenas três mais o autor e o Professor. E eram em número de cento e cinquenta. Das que ficaram uma era criança, outra adolescente e somente Michael Tamuris era adulto, pai da criança e tio do adolescente. Reuniram-se os cinco no centro do salão. Entreolharam-se. Quase não precisavam dizer coisa alguma. A criança, então, tomou da palavra e disse:

– Reconheci Unitah. Quanta diferença do que era para o que é agora!

O Professor olhou o autor e depois para o pai e o adolescente. Perguntou então o adolescente:

– Regredimos?

– Não, esquecemos. Falou Seleto Medeiros.

– Durante nossas viagens costumamos esquecer paisagens magníficas e trocá-las por vales exóticos, disse o autor.

– É preciso ter cuidado enquanto viajamos, disse Michael Tamuris, excelente consultor de idéias novas.

Em nossos subsolos muitas civilizações jazem adormecidas. De quando em quando o auge de uma delas desperta e suplica presença no que somos e queremos agora. É como maravilhar-se com a matemática aos vinte e renega-la aos sessenta, trocando-a pelos afrescos da moda. Assim caminhamos nós de civilizações em civilizações, de tempos em tempos, espaços e espaços.

Até quando as virtudes aquinhoadas no ontem e esquecidas no agora necessitarão mostrar-se acintosamente para nos fazer recordar que temos um patrimônio inalienável de conquistas? Conquistas essas que podem nos impulsionar e nos tirar dos passos lentos e arrastados, das lamúrias e imprecações, das preguiças e dos medos e do mesmismo improdutivo do hoje?

Aqueles cinco viajantes do tempo pegaram seus livros e foram observar, pela janela do trem, a paisagem do hoje-futuro. Estavam aflitos para chegar e rever seus arquivos e apropriarem-se das suas joias guardadas.


“Passado, esse grande, esse iluminado oceano que se contém em nossa alma e que se avoluma, cresce de segundo a segundo, mas do qual jamais transborda uma só gota.”


Victor Hugo


Na Sombra e na Luz - FEB – 1992 – L. 5 - Cap. 6






19 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page