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Eternos Peregrinos - Capítulo 17

A Herança



Queria muito saber o que estava acontecendo. Eu era criança, tinha só oito anos. Crianças de oito anos quase não participam das coisas dos adultos. Minha mãe até que conversava comigo, dizia que nossa vida era muito difícil, que não tínhamos muitos recursos financeiros e que talvez eu tivesse que passar por muitas privações. Que talvez minha adolescência não fosse assim com tantas roupas bonitas, de marca ou que viagens não pudessem ser realizadas. Mamãe dizia isto porque teve uma infância abastada e uma adolescência dos sonhos. Viajava, comprava o que desejava e alimentava-se com fartura e variedades. Aconteceu que, aos dezoito anos, começou namorar uma pessoa. Então se engravidou de mim. Meu avô não aceitou uma filha solteira e grávida de forma que a colocou na rua. Mamãe não tinha para onde ir e, com muita dificuldade, conseguiu arranjar um emprego na casa de uma senhora rica.

Ali eu nasci e cresci. Aquela senhora que foi uma santa em nossas vidas, um dia resolveu morrer. Mamãe não era sua herdeira legítima. Recebeu de presente daquela família pequena casa de um quarto que ficava numa vila de casas, num bairro da cidade. Choramos juntos de emoção, afinal não ficaríamos na rua, como mamãe ficou. Eu estava com cinco anos. Minha mãe começou a trabalhar de caixa num supermercado. Eu ficava com uma vizinha e assim fomos levando a vida. Agora, aquela santa mulher estava preocupada comigo, com o meu futuro, com a minha adolescência. Olhava para ela e dizia pegando suas mãos:

– Basta ter você, mamãe. Você é tudo. Estando a seu lado, estou no céu.

Um dia vovô morreu. Lucinda, este é o nome da minha mãe, quis despedir-se dele. Vestiu um capote emprestado e cobrindo o rosto para não ser reconhecida ou enxotada daquele velório foi despedir-se do pai. Acho que foi perdoá-lo permitindo que aquela alma tivesse um pouco de refrigério. O tempo foi passando, vovó também morreu. Era chegado o tempo das partilhas. Eles tinham alguns bens e minha mãe era herdeira legítima. Eu estava com doze anos e conhecia um tio, irmão dela. Ele tinha um comércio de ferros. Fui até ele e lhe disse que mamãe aguardava a chamada para a reunião daquela herança. Meu tio olhou-me com ódio. Não importei. Deixei na sua mesa o nosso endereço e saí. Como tinha doze anos e era feliz, resolvi passar na igreja e conversar com o meu Pai Maior, sim, porque o meu pai terreno havia sumido.

Não contei a ela que havia procurado seu irmão. Provavelmente ela não aprovaria o meu ato. Contudo existem momentos em que os filhos precisam amparar os pais e foi o que fiz. Um mês depois chegou uma carta pelo correio convocando minha mãe para uma reunião no escritório de um advogado. Ela assustou-se e se perguntava como haviam descoberto o seu endereço. Fiquei calado e aguardei.

– Mamãe eu vou com a senhora.

– Não meu filho. Deixa que eu resolvo isto sozinha.

Eu já sabia. Mamãe iria abdicar de tudo. Sua alma era muito generosa até mesmo para com aqueles que possuíam muito mais que o necessário. Percebi que precisava ajudá-la de alguma forma. Sabia o dia da reunião, naquela data acertei com um colega que ele me roubaria um determinado valor e eu, apavorado, procuraria minha mãe. Claro, naquele escritório e ali participaria da reunião, pois com certeza ela não permitiria que eu voltasse sozinho para casa. Assim aconteceu. Na hora da reunião cheguei ali dramatizando um ato de medo e horror. Minha mãe abraçou-me e apalpou-me para ver se estava ferido, etc.etc. Estas coisas de mães e que todos entendem. Assim pude participar da tal reunião.

Bendita armação. Os dois tios e uma tia queriam que minha mãe assinasse a desistência da herança a favor deles. Eu só tinha doze anos, então falei:

– Ela pode desistir, eu não. Também sou herdeiro e quero a minha parte.

Aqueles espíritos, provavelmente movidos por forças tenebrosas do umbral, quase me agrediram e a coisa foi ficando muito confusa. Começou um tal de falar alto, xingar, esbravejar... Olhava minha mãe e ela permanecia em silêncio. Eu mantinha minha posição de herdeiro. Valia a pena aquela herança. Os velhos haviam deixado muito dinheiro na poupança e alguns imóveis. Daria para vivermos uma vida mais confortada e minha mãe readquirir sua posição de dama e não de réproba social que tão bem fazia a eles. A coisa ficou complicada. Saímos sem nenhuma solução. Dias depois retornaríamos para continuarmos com a tal partilha.

Por que existem espíritos tão belicosos e que tentam passar os outros para trás cerceando-lhes os direitos? Por que não respeitam os direitos alheios? Por que tanta ganância por bens que, de fato não lhes pertencem? Aquela guerra familiar começou a tomar vulto e um dia um homem estranho entrou no supermercado e comprou qualquer coisa barata. Ao aproximar-se do caixa em que mamãe trabalhava disse-lhe apontando uma arma escondida entre seu paletó:

– Abdica da herança senão o seu pequeno guerreiro vai para o mundo dos mortos.

Claro que ela desmaiou. Foi um tumulto no supermercado. A polícia foi chamada e o homem preso. Se ele tivesse saído dali não teríamos mais paz. Aquele fato nos ajudou muito. A polícia quis saber a causa da ameaça e, em pouco tempo, meus tios estavam todos enrolados com a justiça.

Dois anos depois recebemos integralmente nossa parte naquela herança. Era uma tarde de domingo. Passeava com minha mãe. Já tinha quatorze anos e pensava estudar faculdade de direito, quando chegasse o meu tempo. Mamãe abraçou-me silenciosamente. Eu a conhecia. Sabia de todos os seus gestos, de todas as suas volúpias, seus arroubos e sua maneira de ser.

– Filho, precisamos conversar.

– Fala mãe. Diga o que deseja.

– Você está disposto a lutar por uma vaga na faculdade pública?

– Por que está dizendo isto, mamãe. Com o que recebemos de alugueis por mês dá bem para pagar uma faculdade particular. Eu preferia assim.

– Eu não quero a herança, meu filho. Vou vender tudo e oferecer o dinheiro a uma obra de caridade.

– Mãe! O que está dizendo?

– Confia em mim meu filho?

Balbuciei um sim. E tempos depois eu a vi assinando papéis e recebendo enorme quantidade de dinheiro. Numa manhã de sábado, sua folga no supermercado, fomos até uma instituição conhecida da cidade e a vi entregar aquela pasta de cédulas. Com certeza aquele presidente nunca havia visto tanto dinheiro, nem eu e talvez nem minha mãe. Sabe, quando somos filhos devemos ser de verdade. Eu era apenas um adolescente e ela já estava com trinta e dois anos e com alguma experiência, certamente sabia o que estava fazendo.

Um dia, eu estava com quarenta anos. E deitei em seu colo amigo. Precisava repousar minha cabeça. Eram muitos os clientes. Eu me tornara quase rico. Tinha tudo o que quisesse e dava à minha mãe um conforto melhor que ela tinha dos seus pais. Aconteceu ainda algo que queria dizer, ela se aposentou trabalhando naquele supermercado e dizia que ali foi a sua escola, o seu hospital, a sua instituição de caridade e parte da sua vida. Custava a entender, porém mamãe beirava os sessenta e sabia o que estava dizendo. Naquele dia, deitado em seu colo senti suas mãos afagar meus cabelos. Clara, Daniel e Laura, minha esposa e dois filhos tinham ido ao cinema. Preferi ficar com ela, Da. Lucinda, a mulher que eu mais amava no mundo.

– Quer saber filho porque não quis ficar com aquela herança?

– Não sei, mãe. Já faz tanto tempo e tudo mudou tanto! Hoje não precisamos dela.

– Sim meu filho. Meus pais deixaram uma grande herança e preferi abdicar dela. Quis ter a minha própria herança.

Ficou tudo confuso. Sua aposentadoria era modesta e não dava para quase nada. De qual herança estava falando. Mamãe abaixou e seus lábios tocaram minha testa e vi que gostas de lágrimas escaparam dos seus olhos.

– Pedro, a maior herança é um filho ao nosso lado. Meus pais não me quiseram, enriqueceram de dinheiro, mas empobreceram ao mesmo tempo porque não souberam avaliar o real tesouro. Hoje devem lastimar o ato de atirar uma filha na rua quando deveriam acolher, afagar e conduzir.

Eu sempre os amei e sempre esperei deles outra atitude, inclusive a de nos acolher.

Você, Pedro, é minha verdadeira herança. Você é meu filho, foi-me entregue por Deus. Daniel e Laura, seus filhos, representam sua verdadeira herança. Quando nossos corpos morrem, ficam as pérolas dos sentimentos. Se tivesse que tomar conta de todos aqueles imóveis que recebi, podia ser que não teria tempo para tomar conta dos seus crescimentos e tampouco organizar os seus passos para que eles fossem permanentemente para o rumo certo. Entendeu agora, filho, o que é uma herança?

Levantei-me, abracei aquele anjo feito mulher e sai desesperado. Entrei no cinema, peguei Daniel e Laura e os afaguei como nunca. Eu, enfim, entendia que era muito rico, que recebera a maior herança que um homem pode sonhar.



“Resgate é o suor necessário com o pranto da consciência.”

Emmanuel

Justiça Divina - FEB – 2006 – No Campo do Espírito




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