A Cidade de Salviano
Poucas casas haviam sido construídas. Faltava muito ainda. A região era extensa e os projetos de Salviano Lisboa eram muito vigorosos. Desejava ele construir ali uma grande cidade onde pudesse abrigar os viajantes mercadores que levavam grãos para o grande porto que existia a alguns quilômetros em uma jornada longa e cansativa.
A humanidade não deu saltos em seu progresso. Tudo ocorreu de forma gradativa e os recursos foram sendo oferecidos ao homem na medida das suas necessidades. Transportar aqueles produtos agrícolas dos centros produtores aos centros exportadores exigia coragem e tenacidade. Os perigos eram muitos, não havia estradas, apenas trilhas e os animais quase sempre despencavam em abismos profundos. Os homens responsáveis por aqueles cargueiros iam cantando pelos caminhos, lembrando melodias folclóricas notadamente direcionadas para os seres amados ou aos locais onde nasceram. Isto de alguma forma os encorajava. Mercenários contratados postavam-se nas encruzilhadas ou escondiam-se nas florestas densas para assaltos. Quase sempre havia a carnificina entre assaltantes e assaltados.
Certa vez, numa das carroças, viajava uma velha senhora que desejava rever sua filha, habitante em terras distantes. Foi capturada quando ainda menina por uns homens desalmados. Contudo, obtivera notícias dela através daqueles homens de transporte. Fora vendida para um rico produtor e residia numa cidade que ficava além do mar, de nome Lisboa. Para lá rumava aquela mãe saudosa. Houve o assédio dos assaltantes. O pessoal assaltado tinha lá os seus recursos. Armavam-se de lanças e espadas e atiradores de pedras que mantinham os agressores a certa distância enquanto os animais corriam perigosamente por aquelas escarpas. Costumava funcionar e, naquela oportunidade, funcionou.
Chegaram ilesos ao porto. A carga foi colocada num pequeno navio a velas e lá se foi dona Kleuza em busca da filha. As noites costumavam ser belas ou tenebrosas. Dependia do céu. Os marujos, acostumados com a natureza, viajavam como se fosse a última vez que o faziam. Os comandantes animavam aqueles rudes homens com bebidas fortes e carne salgada. Tinham também moças vulgares que os animavam com seus seios desnudos e suas cabeleiras oleosas que os faziam delirar. Assim iam cantando, puxando correntes, velas, cordas e tudo o mais que compunha aquelas embarcações quase primitivas.
Um dia amanheceram às portas do porto. Festejaram. Mais uma missão estava cumprida. Atracado o navio, dona Kleuza foi posta em terra firme e tinha agora o dever de encontrar sua filha, escondida nalgum lugar daquele rincão desconhecido. De tanto perguntar alguém informou que sabia da história de uma menina que fora comprada por um rico senhor e que havia lhe dado alguns filhos em recompensa ao dinheiro gasto. Chamava-se Salviano Lisboa e achava-se às voltas na construção de uma cidade. De passo a passo, de cansaço em cansaço, nossa boa senhora acabou por chegar naquele projeto de cidade. Encontrou-a em construção. Os homens trabalhavam sem parar, indo de um lado para o outro, levantando pequenas construções. Não foi difícil encontrar Salviano. Era um homem alto e magro e de longos bigodes. Ouviu atentamente dona Kleuza.
– Sim. Sei de quem fala. De fato, ela viveu comigo. Agora não sei onde anda.
Um tanto desolada a mulher quis saber dos netos. Salviano não tinha muito tempo a perder com aquela velha e foi logo dizendo que os filhos estavam cada um no seu caminho e que nem sempre tinha notícias deles. Dona Kleuza percebeu que era inútil continuar insistindo com aquele homem insensível e pensou em morar ali, nalgum canto que sobrasse. Andando um pouco viu algumas mulheres que lavavam roupas num pequeno riacho. Aproximou-se de uma delas, a que tinha a maior quantidade de peças a serem lavadas. Sem dizer palavra alguma, começou a ajudá-la. Sebas, a outra mulher, achou a ajuda muito interessante e não importunou dona Kleuza com perguntas.
Terminada a tarefa, Sebas pegou suas roupas lavadas deu uma olhada de agradecimento e se foi. A noite chegou e a mãe infortunada não tinha para onde ir. Já estava acostumada a dormir ao relento de sorte que não teve grandes dificuldades. Tarde, foi acordada por um rapaz alto e forte que a entregou pequena trouxa contendo algum alimento. Agradecida forrou o estômago e foi dormir e esperar novo dia com suas novas surpresas. Os dias se sucederam e as surpresas desapareceram. Dona Kleuza procurava sempre o que fazer em troca de algum alimento ou mesmo migalhas dele. Sempre encontrava alguém disposto a dar algum serviço para que aquela senhora o fizesse.
O tempo foi passando. Salviano não dava a mínima importância pela sua presença. A cidade, aos poucos, foi sendo construída e os mercadores começaram a descansar ali. Dona Kleuza percebeu que sempre vinham com feridas, arranhões ou algum tipo de peste contraída pelo caminho. Conhecia alguns poderes das raízes. Pesquisou as ali existentes, catalogando-as após experimentá-las em si própria, fazendo feridas e arranhões em seu próprio corpo, tornando-se cobaia de si própria.
Um ano depois já possuía pequena tenda onde vendia remédios por ela fabricados e com isto foi se estabelecendo naquela cidade e ficando conhecida por suas raízes curadoras. Os homens muito necessitavam delas não só para usos próprios, mas também para conhecidos e familiares que faziam suas encomendas quando iam passar por aquela cidade. Certa noite foi acordada de madrugada por um homem rude e estranho.
– Seu Salviano tá chamando a senhora. O momento não era para indagações e dona Kleuza ia, enfim, conhecer um pouco melhor aquele homem que não a acolheu quando ali chegou.
– Entra, disse uma senhora mal vestida. Dona Kleuza penetrou aquela casa grande para os padrões locais e deparou-se num dos seus cômodos com aquele senhor alto e magro de bigodes às voltas com uma terrível dor de estômago.
– Com certeza comeu mais que o necessário, pensou a curandeira local. Já havia levado algumas poções medicamentosas. Aplicou-as naquele homem pela ingestão e fricção na altura daquele órgão lesado. Horas depois, aliviado, Salviano entrou em profundo sono. Dona Kleuza deu as determinações à dona que a atendera e foi-se embora, cuidar dos seus outros doentes compradores.
Numa tarde encontrava-se cozinhando raízes quando Salviano em pessoa adentrou sua tenda.
– Mandei fazer uma casa maior para você.
Dona Kleuza não sabia o que dizer. A tenda era fria e pouco a abrigava do frio e das tempestades.
– Fico grata.
– Tem outra coisa, disse o homem. Sei da sua filha.
A curandeira olhou-o profundamente. Sua filha era a razão maior de estar ali.
– Onde está ela?
– Espere. Ainda não é tempo.
Três meses depois, uma casa maior e segura acomodava aquela senhora e suas poções, receitas, pequeno laboratório e uma caixa para guardar o dinheiro arrecadado. Era noite alta quando bateram à porta.
– Entre. Sabia que podia permitir a entrada de pessoas a qualquer hora. Sempre vinham à procura de remédios para os pais, os filhos, o marido, a mulher e todos os membros da família ou não. Uma mulher estranha penetrou o ambiente e dona Kleuza imaginou ser nova moradora da cidade. Sempre apareciam novatos por ali.
– Onde é que tá doendo? Esta era a pergunta tradicional.
– Aqui. Respondeu a mulher. Dona Kleuza levantou um pouco o lampião de resinas e viu que a mulher apontava para o peito no local do coração.
– Um... Doença do coração... Tenho um remédio muito bom, alivia a pressão do sangue.
A estranha deu um salto e abraçou dona Kleuza. O seu coração doía de saudades da velha mãe amada e querida. O resto da noite passaram conversando. Os netos, cinco, encontravam-se dois mortos e três a serviço do rei.
– Onde você estava filha. Procurei tanto você!
– Estava a serviço de Salviano.
– Onde?
– Na cama, com muitos homens. Ainda bem que envelheci e já não presto mais para este tipo de serviço.
Dona Kleuza abaixou os olhos e permitiu que uma lágrima rolasse em seu rosto.
– Tranquilize-se, mãe, eu não me prostituí. Apenas cumpri o que me era devido.
– Estranho, não entendo.
– Para conseguir construir esta cidade, Salviano me entregava a pessoas que o favoreciam politicamente, só isto.
– E você aceitava?
– O que fazer mãe?
Estranhos caminhos estes que os homens traçam para conseguir seus intentos. Serão válidos? Vender-se ou comprar ou vender pessoas traz mesmo conforto? De repente Salviano viu-se doente e não fossem os emplastos e beberagens daquela mulher antiga com certeza teria morrido. Seu caso era sério e beirava a um processo cancerígeno. Fítias, a filha da curandeira, enfim conseguiu reconfortar-se aprendendo com a mãe os mistérios das raízes e, de escrava de Salviano, passaria a servidora de todos.
Que estranho passado reencarnatório teria tido aquela mulher para ter que ser escrava e só depois servidora respeitada? E seus filhos, por que não pode estar a seus lados, acompanhando-lhes e protegendo-lhes os crescimentos?
Dona Kleuza morreu asfixiada pela tristeza e Fítias, machucada na alma, continuou sua obra. Salviano um dia também morreu. Foi assassinado pelo seu sucessor e desapareceu nalgum lugar dos abismos tenebrosos e os homens continuaram suas escaladas pelo mundo. É bom perguntar-se quem são, por que são e o que fazem dos seus projetos e o que é ou não válido para realizá-los. A cidade de Salviano foi absorvida pelas águas e hoje jaz nas profundezas do mar, escondendo esta história de poder, ambição e desrespeito à pessoa humana. Fora ele o motivo do escândalo para aquelas almas que redimiam seus passados culposos. Se for necessário que o escândalo venha, que não sejamos nós os motivos deles. É bom pensar assim quando imprimimos uma decisão e que deve ser realizada custe o que custar. Se o preço for o degredo de alguém, certamente o futuro será de sombras e lágrimas. Salviano sofre até hoje. Está custando muito a se levantar dos lodos com o qual se inundou nos abismos profundos. Enquanto isto, Fítias é hoje médica respeitada e mãe de dois filhos. Kleuza importante espírito gestor das lides acadêmicas da abençoada medicina terrena.
“Ética é a ciência da moral, que tem por objeto a análise e o julgamento de apreciação aplicado à distinção entre O bem e o mal...”
Carlos Torres Pastorino
Impermanência e Imortalidade - FEB – 2005 – Ética e Razão
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