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Eternos Peregrinos - Capítulo 19

A Santa e o Curandeiro



As faces daquela moça tinham algo que tocava. Absolutamente belas irradiavam simpatia e bondade. Havia completado vinte anos e era amiga e companheira ao mesmo tempo em que severa e disciplinada. Naquele lugarejo não havia quem não enaltece suas virtudes, sua singeleza e singularidade. Ainda não fora tocada pelo olhar mágico de um príncipe. Claro que muitos tentaram, porém sua conduta sempre reta fazia aqueles moços respeitarem seus limites. Vera, sua mãe, no entanto sabia que na intimidade daquele coração havia um trono especialmente reservado. Para quem seria ele? De onde viria? A moça não se importava com a idade. Já estava além do limite do casamento e já possuía todo o enxoval necessário bem como o dote a ser oferecido. Seu pai era próspero mercador de especiarias trazidas da Índia e distribuídas em vários portos da Europa.

Do palacete em que morava, Raissa observava o pôr do sol bem como o alvorecer do dia. Era adepta a esses quadros espetaculares da natureza. Quando em observação sempre entoava suave melodia. A língua era desconhecida de todos, mas ela, sorridente, dizia ser de uma civilização que um dia retornaria à face da terra. Será que as civilizações mortas ressurgirão um dia? Raissa não se importava com os comentários à cerca das suas certezas espirituais. Assim vivia e nos dias de festas enfeitava o salão e preparava as donzelas para as conquistas dos seus pares. Era excelente estilista. Desenhava como ninguém os mais belos vestidos que encantavam os olhos que os observavam. Assim, de predicados em predicados, alcançou aqueles corações simples e de poucas expressões ou argumentos superiores.

Desde cedo aprendeu a ler e escrever. Lia sempre e escrevia com uma rapidez assustadora. Seus escritos eram repassados para as pessoas em forma de páginas soltas ou dependurados em varais culturais em dias de feiras para que todos pudessem apreciar suas páginas românticas. Assim, promitentes consortes dedicavam-se mutuamente aqueles escritos como que para selar seus compromissos. Até os meninos e meninas entretinham-se em repassá-los mesmo não sabendo ler ou escrever. Sabiam apenas que o conteúdo era de amor e isto lhes bastava. As páginas vinham adornadas com molduras em púrpura geralmente simbolizando alianças e corações e isto era encantador.

Um dia Raissa adoeceu. Ficou gravemente enferma. Sua voz emudeceu, suas faces empalideceram e suas mãos de fada ficaram hirtas sobre as cobertas de seda e linho. Todos queriam visitá-la já que a morte se prenunciava iminente. Seus pais, contudo, protegiam-na daqueles assédios voluptuososde energias descontroladas. E eles estavam certos. Visitar pessoas doentes deve ser uma arte. É necessário levar-lhes saúde através da paz e da harmonia. Raissa pouco se alimentava e olhava perdida para algum além. Aos poucos seu corpo belo foi perdendo forças e em pouco tempo era um amontoado de pele e ossos suplicando a misericórdia da morte. O lugarejo estava triste. Os pássaros deixaram um pouco seu cantar e foram pedir à mãe natureza as folhas e raízes que pudessem restituir vida àquele ser tão amado e querido por todos.

Certo dia apareceu ali um viajante vindo do oriente. Veio junto às especiarias e desejava implantar em solos do ocidente a doutrina do seu mestre. Era um homem estranho de roupas exóticas e cabelos cortados em forma de tiras que iam até o pescoço. A barba era convenientemente aparada formando cavanhaque que mais amedrontava que adornava. Porém trazia paz eu seu olhar e singeleza nos gestos. Postou-se na pequena praça central e pôs-se a meditar. Os transeuntes, ao passarem, observavam sua posição de yogue, paralisado, como que estátua. Dias depois, após alimentar-se de grãos que trouxera na sacola, resolveu andar e conhecer melhor o lugarejo para estabelecer sua tenda de doutrinações.

Era um dia daqueles em que a história se nega a registrá-los. Raissa, enfim, deu seu último suspiro naquele corpo extremamente debilitado. O luto foi geral. Filas se formaram defronte ao castelo para a última olhada e a despedida final. Findo o tempo das exéquias o corpo foi depositado num mausoléu construído e adornado para receber o corpo daquela virgem. Os dias que se seguiram foram de peregrinação àquele local para os pedidos de ajuda, principalmente no campo dos amores impossíveis. A fama de Raissa começou a correr o mundo em volta e não demorou muito para que fosse canonizada por aquelas almas pequenas de gostos simplórios. Os pedidos passaram dos ajustes amorosos para as descobertas de tesouros, mortes dos indesejados, pragas para lavouras dos inimigos, enfermidades para os pais a fim de abreviar recebimento de heranças, etc.

O moço do oriente também foi atraído para aquele local. Percebeu que os pais da morta orgulhavam-se da filha e começaram a cobrar pequenas quantias para cada pedido. Diziam que era para ajudar na conservação do mausoléu e na construção de um templo para melhor atender aos pedintes. E fizeram uma tabela de preços de acordo com o tamanho do milagre a ser buscado. Os pedintes, quase sempre, simples camponeses acreditavam nas forças daquela santa e pagavam o exigido acreditando que estavam comprando o que desejavam. O comércio se estabeleceu e não demorou muito para que um grande templo fosse construído em derredor àquele mausoléu. Um escultor recém chegado esculpiu em mármore a figura da moça de acordo com as descrições e, por incrível que pareça, vendo a escultura via-se Raissa tamanha a fidelidade daquela obra de arte.

Chegou a tal ponto aquela história que ninguém tomava decisões importantes ou não sem antes fazer uma consulta ao oráculo. O moço que desejava implantar as lições do seu mestre oriental ficou encantado com a escultura da moça. Era de fato muito bonita, pensava ao observar por longos períodos os traços daquela figura feminina. Ele costumava ir ao oráculo à noite quando todos já se tinham ido. As peregrinações terminavam sempre com o pôr do sol após ritual implantado pelos pais da menina em lembrança às suas observações daquele evento e ao raiar do dia, copiando igualmente o gosto da moça. E os rituais foram cada vez mais se sofisticando e ganhando adeptos que os fazia em casa, em viagens ou onde estivessem.

Nossas missões têm sempre uma data de início e término, de sorte que a missão daquele moço de cavanhaque estranho estava se atrasando no seu início. As forças cósmicas contribuem conosco quando cumprimos nossos compromissos nos tempos certos. Depois, se passar o momento, perdemos o tempo e certamente o fracasso será iminente. Contudo, o moço encantara-se com a estátua e começava a trocar sua missão pela admiração daquela imagem feita de mármore. Teve então uma ideia, começaria a cobrar consultas sobre as raízes curadoras e que bem conhecia. Com o dinheiro compraria um barco, contrataria marujos e iria para alguma ilha deserta com aquela estátua. Nossos desejos são ordens para nossas mentes e elas trabalham acirradamente para nos atender. Assim, as coisas começaram a dar certo para Yandy, era este o seu nome.. As raízes curavam ou cessavam a intensidade das dores e ele se portava ao lado do templo da sua deusa e aproveitava os caravaneiros para vender-lhes os produtos. O barco foi adquirido e o roubo da estátua se deu numa noite fechada de tempestade quando todos se aquietavam em seus lençóis temendo a ira do Senhor. Marujos de outros locais realizaram o roubo sob o olhar atento de Yandy e fartas moedas que lhes caíram nas mãos. O mediterrâneo estava bravio, mas era necessário arriscar. O barco era forte e assim aconteceu. Devidamente camuflada e protegida a estátua foi colocada no porão daquela embarcação que rumou célere em busca de um lugar deserto. Nas costas africanas existiam locais ainda inexplorados pelo homem. Num deles nosso herói das missões abandonadas resolveu estabelecer-se. Fez um subterrâneo e erigiu ali o templo particular da sua deusa.

Lá, no lugarejo, o sumiço da estátua foi tido como milagre e o pedestal onde fora depositada tornou-se ponto de referência para os pedidos e acendimentos de tochas para as vigílias noturnas que agora se faziam intensamente. A deusa havia se tornado luz e desaparecera nas estrelas. Era esta a explicação que os pais de Raissa davam para os peregrinos que, cada vez mais, adoravam os ossos daquela moça morta fazia algum tempo.

Numa noite, Yandy desceu os subterrâneos. Precisava adorar a estátua. Seu coração estava apertado. Alguma coisa gritava dentro de si querendo falar. Após duas horas de meditação sua mediunidade enfim abriu-se e Raissa lhe surgiu viva como que saindo daquela estátua. Era de novo a mesma moça encantadora de olhar e gestos sublimados e envolta em luzes multicores. Yandy não temia as aparições. Quantas delas presenciou nos mosteiros onde passara sua infância e juventude. O que incomodava aquele moço era o silêncio da sua aparição. Ela apenas o olhava como que pedindo uma explicação. Tempo depois desapareceu e Yandy continuou meditando e olhando a estátua e se perguntando sobre a mudez daquela moça que o encantara. Dias e noites se passaram e ele continuava pensativo. Trabalhava com maestria e manipulava recursos médicos como ninguém e seu ofício foi ganhando fama e chegou ao lugarejo onde Raissa vivera sua curta encarnação.

Nem todos os peregrinos enfermos conseguiam cura no templo da deusa Raissa. Assim preferiram busca-los na medicina conhecida na época e Yandy era o mais respeitado dentre todos os curandeiros. Embarcações começaram a chegar e Yandy os atendia e as enfermidades cediam e os enfermos conheciam um pouco de conforto para seguirem suas vidas. As doenças eram quase sempre por viroses que se estabeleciam nas gargantas, abdomens ou músculos. Quando os carmas permitiam a cura se fazia e Yandy bem entendia disto. De modo que não enganava ninguém. Dizia se podia ou não curar a enfermidade.

– Tudo depende do doente. Afirmava.

Aconteceu que um dia, uma pessoa o reconheceu. Na verdade, Mirov sempre desconfiava do sumiço da estátua com o sumiço de Yandy. Deram-se no mesmo tempo. Mirov possuía tino policial e começou a tecer os fios daquele enigma. Não se afastava muito da tenda de Yandy e o observava o tempo todo, nos mínimos atos. Numa noite percebeu que o indiano desapareceu num subterrâneo. Claro que os místicos possuem comportamentos diferentes. No dia seguinte, enquanto o curandeiro atendia a extensa fila de doentes, Mirov penetrou sutilmente o subterrâneo e deparou-se com a estátua. Havia descoberto o segredo e precisava alertar à comunidade daquele lugarejo sobre o engano que estavam cometendo em adorar tochas para reverenciar uma estrela que havia fugido do pedestal para se estabelecer no firmamento.

Tempos depois o mito de Raissa havia desaparecido quase que totalmente, não fossem as beatas de plantão que sempre encontravam um motivo para continuar nas suas vãs certezas. E Mirov acabou por confessar suas descobertas e apontar o local onde se encontravam a estátua e seu sequestrador. A tenda de Yandy foi invadida e o subterrâneo violado. A estátua foi destruída e os restos de mármore arremessados com fúria para o fundo do mar. Yandy foi preso e condenado à morte. Na noite que antecedeu sua execução não conseguiu dormir e bem tarde, Raissa surgiu-lhe. Olhava-o com tristeza e depois lhe disse:

– Ah, meu príncipe. Até quando terei que esperar por você?

Yandy chorou. Sim, sua missão era curar os doentes que procuravam a noiva perdida na civilização do passado. Porém, a tarefa regeneradora cedeu lugar à idolatria. E o curandeiro retornou ao plano espiritual e foi para o mesmo lugar de onde havia saído e Raissa, um pouco mais distante, ainda suplicava a Jesus a permissão de reerguê-lo.

Até quando o amor terá que ser exercido apenas no mistér de chamar para si os entes queridos submersos nas lamas da ignorância e aquietados em seus plasmas? Quando será o dia em que livres, as almas que se amam, possam elevar-se às culminâncias siderais e voarem felizes para as conquistas da eternidade? Raissa e Yandy bem poderiam ser os deuses curadores daqueles camponeses iletrados e confiantes. Raissa o faria através dos fluídos energéticos da espiritualidade e Yandy através das raízes, fluídos terrenos, e da pregação da doutrina da alma que bem sabia e para a qual fora preparado. Trabalhariam juntos e seriam representantes dos imensos recursos oferecidos por Deus para a cura e encaminhamento de seus filhos; ele encarnado e ela Espírito guia daquele empreendimento. Depois, então, seriam o príncipe e a princesa retomando o trono perdido. Porém, Yandy preferiu outro caminho e Raissa teve que seguir o seu. Será que um dia...


“Sabemos hoje que o homem é um anjo nascente e que séculos correrão sobre séculos antes de finda a empresa de seu apuro.”


Duílio Bérni

Brasil Mais Além - FEB – 1991 – Cap. 21

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