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Eternos Peregrinos - Capítulo 20


O Vendedor de Leite


Empurrando sua velha carroça de leite o velho Nestor perambulava pelas ruas imundas daquela cidade descuidada. Quem seriam seus moradores que não atentava para os perigos das epidemias provocadas pela falta de higiene? O leite que Nestor transportava certamente estava contaminado e muitas crianças, velhos e adultos tomariam dele, como alimento imprescindível às suas vidas. Nestor pouco se importava. O que queria mesmo era ganhar o seu pão para que sua vida não se perdesse no emaranhado da fome e da miséria.

Havia ali uma senhora muito elegante que destoava dos demais moradores. Era a D. Severa Assunção, mulher dos seus cinquenta anos e que vivia ali desde que nascera. Residia numa pequena estância que ficava à margem da estrada. Sua casa era pintada de ano em ano e o piso lavado e escovado todos os meses. Os móveis recebiam o tratamento semanal de óleos e o vasilhame lavado todos os dias. As roupas eram colocadas ao sol de tempos em tempos e essências de flores dispersadas pelo ambiente todos os dias.

D. Margarida não gostava de leite. Era a única ali que o dispensava. Nestor bem que tentava vende-la seu produto, trazido direto do produtor. Levantava bem cedo e ia para o curral do senhor Frederico Costa, pegar o leite da primeira ordenha da primeira vaca. O tempo ia passando e o leite consumido acabava por gerar inúmeros desconfortos intestinais nos moradores. Constantemente as pessoas buscavam o farmacêutico para suas consultas e remédios, isto sem contar as inúmeras visitas que D. Cleuza recebia diariamente para consultas aos seus búzios, amuletos, cartas, cristais e totens. Receitava raízes depois das benzeduras. E o povo voltava para casa, bebia novamente o leite e depois retornavam à farmácia ou à tenda da D. Cleuza.

O tempo foi passando. Muitas crianças, claro, não sobreviviam. Quantas mães, jovens ainda, acalentaram seus filhos durante toda uma gravidez de sonhos e expectativas para perder seus rebentos tão logo nasciam e bebiam daquele leite vendido pelo Nestor. Outros ainda sobreviviam por alguns anos e depois apareciam com manchas horríveis pelo corpo que se abriam em feridas incuráveis por qualquer tipo de remédios ou raízes, sendo totalmente resistentes às benzeções. Caso suportassem e permanecessem vivos tornavam-se repugnantes e absolutamente impróprios para viverem em sociedade.

Nestor, D. Cleuza e o farmacêutico eram as figuras mais conhecidas dali. Ninguém resistia ao sinete da velha carroça e os gritos festeiros do leiteiro:

– Olha o leite... Chegou a hora do leite... Venham pegar o leite...

E todos se sentiam afagados por aquele chamado e corriam com suas vasilhas e moedas e a troca era feita. Um dia chegou àquele lugar um menino de quinze anos. Vinha de um lugar muito distante. Gostou do lugarejo, das pessoas, do circo que permanecia ali e que já fazia parte da vida de todos. O menino era muito esperto, curioso e pesquisador de costumes. Conversou com todos aqueles moradores e, como sociólogo prematuro, rastreou cada desejo, cada ação e reação daqueles moradores. Apaixonou-se por Ritinha Vargas, de dezoito anos. Isto foi o bastante para que fixasse sua residência ali mesmo e foi trabalhar no curral do senhor Frederico Costa.

De pronto o pecuarista aprovou suas atitudes. Era de uma capacidade assustadora no trato com os animais. Ali, além do gado tinha também cabras, suínos, aves e uma série da animais que visitavam a propriedade no afã de conseguir alimentos para suas sobrevivências. O menino gostava daquela convivência com os animais. Aprendeu de pronto o nome de todos eles e deu nomes àqueles que não tinham. Era o último a se deitar e, à noite, ficava observando o comportamento daqueles habitantes da fazenda e dos moradores extras que surgiam para seus repastos, retirados dos estrumes ou restos alimentares do gado, cavalos e porcos.

Uma noite o menino não conseguiu dormir. Alguma coisa o incomodava muito. Parecia ser uma premonição de que algo iria acontecer. Seus pensamentos voaram para a casa de Ritinha Vargas. Estaria ela já grávida? Mas como era possível se apenas namoraram uma vez. Seria muito azar e também seria banido ou para outra cidade ou para o cemitério porque o pai da menina era feroz feito leão mordido por raposa. Pela manhã correu até a casa da moça e a viu feliz, bailando ao som dos seus sonhos de mulher recém chegada.

– Precisamos nos casar. Disse o menino.

– Casar? O que é isto. Quero muito me mandar para o mundo. O que desejava de você já consegui. Pode se mandar.

O menino viu que aquela moça não preencheria sua vida e tampouco ele a dela e tratou de esquecê-la. Naquela noite também não conseguiu dormir e nem em outras. Alguma coisa o incomodava muito. Numa delas resolveu pesquisar o grande problema que o infligia. Foi de ponto a ponto daquela propriedade para ver os animais, a casa sede, os celeiros, os cereais recém colhidos prontos para os devidos beneficiamentos. Tudo estava em ordem. Resolveu então ir ao pasto ver o gado. As vacas estavam quietas, mas alguma coisa se mexia por entre elas. O menino parou para não fazer barulhos. Aguçou sua vista, apurou o olhar e viu...

Uma comunidade de ratazanas se deliciava daquele leite antes que as pessoas o consumissem na manhã do dia seguinte. As vacas haviam se acostumado com suas presenças assim como os moradores com aquele leite contaminado.

O menino aguardou que o dia amanhecesse e assim que viu o proprietário dos animais correu e contou-lhe o que havia descoberto.

– Fica calado menino. Quer me arruinar?

Estranhamente o senhor Frederico levou-o até um portal que dava acesso a outro pasto e lá existiam também outro gado e cabras.

– Toma. Este leite não é contaminado. Este eu sirvo só para minha família.

– E porque o senhor vende o que é contaminado e reserva este para sua família?

– Está vendo aquela carroça ali? Pode pegar três latas grandes de leite e vender para os moradores.

O menino pegou as latas colocou numa carroça nova e elegante. Vestiu-se de uma roupa limpa e de luvas saiu para o centro daquele vilarejo.

– Olha o leite puro. Este não provoca doenças... O primeiro dia é de graça...

Seus gritos confundiam com os gritos do velho Nestor:

– Olha o leite... Chegou a hora do leite... Venham pegar o leite...

A comunidade enxotou o menino e ficou com o velho Nestor e as doenças continuaram. Senhor Frederico pagou os serviços do garoto e ele se foi. Foi morar na casa de D. Severa Assunção que, como ele, preferia o leite puro que não provoca doenças e permaneceram puros e saudáveis enquanto que a comunidade...



“A mentira é a ação capciosa que visa ao proveito imediato de si mesmo, em detrimento dos interesses alheios em sua feição legitima e sagrada...”

Emmanuel

O Consolador - FEB – 2006 – q. 192


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