O Decreto
Foi um dia de muitas realizações. Éramos cinco mulheres e dois homens. Juntamos nossas forças e conseguimos erguer um pedestal na praça. Ali, certamente, inúmeros artistas cantariam suas músicas ou declamariam seus versos tornando nossos domingos ainda mais festivos. Particularmente, estava muito feliz. Fazia tempo que sonhava com um local como aquele. Desde criança gostava de cantar e dançar. Entendia que a arte deve fazer parte de todos nós. Ela, a arte, é o mais perfeito meio para se chegar à perfeição. Havia pessoas que não pensavam assim. Achavam que a arte deprava, expõe e marginaliza aqueles que abraçam a carreira artística. Claro que eu não poderia assumir a carreira de artista. Já estava com vinte e oito anos, marido e três filhos para criar. Sandra estava com doze e já falava em namoro. Não demoraria muito seria sogra e depois avó, dentro da sequência natural. Seria só plateia, atenta e absorvendo os eflúvios da arte.
Dois dias depois fomos chamados pelo prefeito da cidade. Lá fomos nós. É bom esclarecer que um daqueles homens que fazia parte do grupo era o meu marido.
– A câmara Municipal autorizou a colocação daquele pedestal na praça? Perguntou-nos.
Sinceramente não entendia direito os trâmites dos poderes públicos. Muito menos sabia se alguém tinha que autorizar alguém. Estava vindo de uma aldeia onde todos se reúnem e fazem o melhor para todos.
– Autorização? Perguntei.
– É. Então na sabem que para fazer qualquer obra na cidade é necessário que se crie uma lei? Ou um decreto ou ainda que se dê uma autorização formal? Perguntou o enfático prefeito.
– Não. Não sabemos. O que sabemos é que desejamos alegrar as pessoas que passeiam pela praça nas tardes de domingo. Moram aqui muitos músicos, cantores, dançarinos e poetas. Demos a eles, pois, um local para suas apresentações, sem contar que os pintores podem exibir suas telas para a plateia presente.
– Impossível. Gritou o magno senhor. Impossível! Não queremos criar marginais em nossa cidade. De marginais passarão a delinquentes e depois bandidos. Não. Não autorizo de forma alguma. Derrubem o pedestal. É uma ordem!
Fomos expulsos da prefeitura quase que a ponta pés. Passamos pela praça no intuito de retirarmos o pedestal. Porém, quando lá chegamos, um grupo de crianças alegres e festivas formou um pequeno auditório e cantavam e declamavam e tocavam teclados, violões e os moradores se aproximavam e se orgulhavam dos seus filhos. Quando nos aproximamos, as crianças nos saudaram com aplausos, assovios e urras! Uma delas, morena quase índia, pegou seu violão e, aproximando-se de nós, cantou como rouxinol uma canção de agradecimento que enterneceu nossos corações.
– Obrigada. Obrigada por tudo. Só que viemos retirar o pedestal. Disse-lhes entristecida.
Assombros... Nãos... Choros... Rogos... Tudo. Tudo aconteceu a um só tempo.
– Não podemos fazer nada. É ordem e temos que cumpri-la. É ordem da autoridade máxima!
Um senhor dos seus setenta anos, cabelos e barba brancos, olhos de artista que seduzem a plateia e absolutamente desconhecido naquela cidade, adiantou-se e perguntou:
– Mas, não há nada o que fazer?
– Não. Respondi. O senhor prefeito disse que não pode fazer nada na cidade sem que haja uma lei, um decreto ou uma autorização e que não a dará para atividades artísticas que podem criar delinquentes.
Aquele senhor de arminho, passou as mãos na barba, olhou aquelas jovens promessas da arte e perguntou-lhes:
– Querem o pedestal?
– Sim. Queremos. Um coro em terça se fez ouvir.
– Pois então que façamos um decreto!
– Um decreto? Perguntei.
– Sim. Um decreto. E ele diz assim:
“Fica destituído o prefeito do seu cargo de prefeito. Leia-se e Cumpra-se.”
Silêncio seguido de aplausos delirantes. Um jovem e promissor magistrado redigiu a nova lei e foi até à prefeitura e o entregou ao prefeito.
Daquele dia em diante, a arte pode ser ouvida e sentida naquela praça. E aquele senhor de barba e cabelos brancos? Desapareceu. Nunca mais foi visto, a não ser por Lilinha, estranha garota que tinha visões. E o prefeito foi fazer um curso para aprender a arte de governar.
As imperfeições são véus que ocultam Deus
À visão dos Espíritos inferiores...”
Suely Caldas Shubert
Entrevistando Allan Kardec - FEB – 2005 – Deus
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