Os Sonhos de César
Eu tinha sonhos diferentes de todas as pessoas. Normalmente sonhamos com coisas do cotidiano, com assuntos insolúveis ou com soluções milagrosas ou algo do gênero. Comigo era diferente. Sempre via coisas inexistentes, pessoas que não falavam e animais que não tinham similares neste mundo. Esses sonhos começaram a acontecer quando tinha quatorze anos. Foi no dia em que Rominha me disse que não queria mais saber de mim. Foi um duro golpe. Aquela garota era o meu ideal de adolescente. Certo que era dois anos mais velha que eu, mas o que tinha a ver isto? Acho que disseram para ela que eu era pirralho apesar dos meus quase um metro e setenta. Naquela noite eu quase chorei, quase derramei a primeira lágrima por causa de um amor perdido. Porém mantive a compostura de “homem” e fui dormir mais cedo. Então sonhei. São vagas as lembranças, mas eu estava num lugar muito diferente onde não existiam montanhas ou mares e uma voz me disse suave:
– Ainda precisa crescer!
Foi o bastante. Levantei-me no dia seguinte e vi que eu era grande apenas por fora, mas dentro de mim ainda queria fazer coisas de menino. Abandonei a idéia de preparar-me para casar e fui praticar esportes e estudar. Rominha mudou-se pouco tempo depois e hoje nem sei dela. Fui crescendo um pouco mais e os sonhos continuavam. Num deles vi uma estrada muito comprida e rodeada por postes luminescentes. As luzes mudavam de cor o tempo todo e havia também uma canção, não daquelas que estava acostumado e gostava, mas uma canção diferente e que tinha sabor. Quando a ouvia sentia na boca o gosto adocicado de um suco que não identificava. Muitas vezes, na escola ou praticando esportes, tive vontade de brigar com alguém para defender meus direitos. Então me lembrava daqueles sonhos e saía ruminando sozinho minhas queixas. Os colegas às vezes achavam que eu era covarde, mas não me sentia assim. Tinha medo de brigar e os sonhos desaparecerem. Eles me faziam enorme bem e quase todas as noites eu sonhava.
Agora já estava com dezessete e Elaine disse que gostava de mim. Tive receios de reviver com ela o mesmo desencanto que tive com Rominha. Então a lembrança do sonho me aquietou. Se acontecer, eu sonho e fica tudo bem. Elaine era mais madura que Rominha e da minha idade. Era um tanto mais baixa e isto dava a impressão que eu era muito mais velho que ela. Isto aliviaria os desejos alheios, como aliviou. Namoramos muito tempo, acho que até hoje, pois somos casados e temos filhos e netos e saímos sempre para namorar, principalmente nas tardes que tem poesia na praça.
Os sonhos sempre estiveram presentes e nortearam cada passo da minha vida. Agora, estou com sessenta e cinco. Ontem mesmo tive um sonho muito estranho. Sonhei que morava numa grande cidade. As pessoas eram felizes, porém enfermas. Traziam nas faces duras marcas das suas doenças. Não as via reclamar, apenas caminhar, seguindo conselhos médicos. Duas senhoras, uma em cadeira de rodas e outra mancando muito, conversavam animadamente. Aproximei-me, queria ouvir o que falavam. Ao me verem, sorriram e eu lhes perguntei.
– Vocês são felizes?
– Sim. Muito felizes.
– Mas, e a cadeira de rodas e a perna doente?
Olharam-se e sorriram. Naquele instante um médico de plantão naquele lugar aproximou-se e convidou-me a um passeio. Sim aquele recanto era aprazível e dava uma vontade enorme de ser forte, vencedor, feliz e agradecido. Comecei a me envolver com aquela aventura. Os sonhos sempre promoveram paz em minha alma e aquele, com certeza, não seria diferente. Caminhamos um pouco e em dado instante o médico convidou-me para assentar em pequeno relevo daquela relva. Era como se fosse um banco macio e multicolorido de azul e prata.
– Aqui tudo é diferente, não é mesmo? Perguntou-me.
– Sim. Gostaria muito de saber que lugar é este. Respondi.
– Aqui é um lugar onde se cura enfermidades. Disse-me.
– Um hospital?
– Não. Uma estância.
– De águas minerais?
O médico não respondeu. Percebi que conversávamos em línguas e conhecimentos diferentes. Achei melhor calar e esperar que ele falasse. Certamente eu não havia ido para o sonho para levar informações a ninguém e sim recebê-las. Isto era claro, tendo em vista as diferenças para melhor que encontrava ali. Comecei a entender essas diferenças quando moço. Às vezes vamos a locais onde as pessoas e as coisas são melhores que nós ou com aquilo com o qual estamos acostumados e desandamos a falar, quando o prudente é ouvir. Permiti-me, pois a ouvir. Enquanto isto olhava a paisagem e vi que o céu era diferente, o sol era mais distante e, por conseguinte não queimava tanto. Que seus raios eram esverdeados e que se podia olhar para ele sem protetores oculares. E vi pequenas revoluções nucleares. Enquanto olhava, meus olhos expandiam-se e, após, olhava para outro recanto e as pupilas dilatavam. Era como se transformassem em lupas e eu via o longe muito de perto. Assim o mundo e as coisas distanciavam ou aproximavam de acordo com o olhar ou não para o sol. Estranho e ao mesmo tempo magnífico. As coisas também mudavam de cores dependendo do tempo de exposição aos raios solares. O médico me olhava e se deliciava com minhas descobertas. Eu não me fazia de rogado e procurava novos matizes, novas nuances, novas possibilidades dentro daqueles movimentos que encantavam. Depois me lembrei dos doentes e das enfermidades. Por que eram felizes? Aquele médico tomou minhas mãos, afagou-as e disse com propriedade:
– Felizes são todos aqueles que acolhem suas enfermidades sem reclamar.
Era uma boa frase e daria muito que pensar. O que vejo e sei são pessoas apavoradas com a possibilidade da doença e da dor.
– Sabe por que as pessoas com quem vive têm medo da doença e da dor?
Não respondi. Minha resposta creio, seria fútil demais para o momento. Ele elevou seus olhos aos céus esverdeados dali e me disse com absoluta certeza:
– As pessoas temem as doenças porque sabem que ficarão impedidas de voltar a errar.
Achei que começava ali uma apologia aos masoquismos. Afinal, os sonhos costumam ser malucos!
– As doenças representam possibilidades de libertação. Elas surgem quando extrapolamos os limites. Temos ante corpos físicos e espirituais. Eles suportam determinadas quantidades de cargas negativas, se as cargas são aumentadas ou se mais fortes quase sempre entramos em conflitos e a imunidade cai e ficamos doentes. Então necessitamos recuperar. As cargas energéticas em excesso geradas por nossas ações malévolas atingem os pontos por onde penetraram, deixando-nos enfermos. Então necessitamos recuperar as partes lesadas. Se o corpo físico não suportar e perecer o tratamento continua no corpo espiritual uma vez que somos imortais.
Foi ai que entendi a sua frase:
– As pessoas temem as doenças porque sabem que ficarão impedidas de voltar a errar.
Sim, curados não podemos voltar a errar. Lembrei-me de Jesus. Caso contrário pode nos acontecer o pior.
– Aqui é um mundo de regeneração. As pessoas ainda sofrem de suas doenças, porém sabem a importância da recuperação e o valor do aprendizado. Por isto são felizes e aguardam confiantes, o retorno da saúde para fazer dela o grande talismã dos seus crescimentos. O seu mundo está prestes a transformar-se também num mundo como este, de regeneração. Volte e diga para todos que regenerar significa reconhecer as culpas e tratar de curar-se.
Elaine despertou-me. Era hora de ir ao médico tratar da minha coluna. E eu, que sempre reclamava daquelas dores, naquela manhã acordei feliz e fui tratar jeito de me curar e sabem como? Falando e escrevendo sobre minhas experiências com os sonhos. Eles são vivências enquanto o espírito está livre do corpo, por algum tempo. Aprendemos com os Espíritos com os quais nos ligamos durante o dia. Se buscarmos boas companhias quando em vigília, à noite encontraremos bons companheiros prontos a nos fortalecer, informando e conduzindo. Os sonhos podem representar vivências extraordinárias como a que vivi naquele mundo que abriga almas em regeneração, como podem refletir vivências em colônias espirituais do nosso próprio mundo. Sabe o que um mentor amigo me disse num daqueles sonhos?
– César, quando se levantar pela manhã, assente confortavelmente nalguma poltrona ou quiosque ou onde preferir e tente se lembrar das vivências da noite. É salutar esta atitude. Pode ser que relembre de algo importante que tenha aprendido enquanto o corpo dormia.
Andei folheando compêndios espíritas. Li que “Os sonhos são efeito da emancipação da alma, que mais independente se torna pela suspensão da vida ativa e de relação. Tem lembrança do passado e às vezes a previsão do futuro” É a questão 402 de O Livro dos Espíritos.
Desde aquele dia comecei a fazer minhas meditações em todas as manhãs. Às vezes me sinto correndo nalgum corredor de luz, noutras vezes revejo vilarejos tristes com pessoas acabrunhadas, noutras vezes ainda deparo-me com praças, pessoas, movimentos... Nem sempre consigo recordar-me do que disse ou ouvi, mas, incrível, a síntese daquelas vivências parece surgir em forma de uma vibração que decodifico. Se me faz bem, minha noite foi com bons companheiros, se não me sinto assim tão confortável, identifico que provavelmente estive em locais ou com companhias não tão felizes ou sãs.
Ah, mas uma noite daquelas tive um sonho que até hoje é uma chama viva em minha memória: estava com dez anos. Ainda no início da minha última encarnação. Adormeci nos colos de mamãe e papai. Fui transportado a um local onde reinam a paz e a concórdia e um homem muito garboso aproximou-se de mim e disse:
– César, Busque sempre lembrar-se dos seus sonhos. Será sua bússola, seu guia. É preciso orientar-se por eles para que sua encarnação seja mesmo muito proveitosa.
Aquela recomendação que recebi no alvorecer da nova existência ajudou-me sobremodo. E mesmo que não tenha me lembrando na manhã do dia seguinte, ficou impressa em mim, ajudando-me a relembrar e tentar entender os meus sonhos.
Hoje, já estou de volta ao plano espiritual. Às vezes vou até meus amigos, filhos, netos, companheiros vários para buscá-los enquanto o corpo dorme. Faço isto na tentativa de ajudá-los nesta ou naquela dificuldade. Alguns aceitam minha companhia, outros nem tanto. Preferem ficar se deliciando com as lembranças do dia, dos encontros, negócios, folias, exageros ou ainda premeditando ameaças, armadilhas dando vazão às intempéries da mente em desalinho e a noite passa e de novo no corpo, na manhã seguinte, envelhecem-no ainda mais rapidamente porque voltam cansados exigindo mais das células que compõem o vaso abençoado que receberam na encarnação. Mas, continuarei tentando ser o condutor dos Espíritos nas noites enquanto o dorme o corpo. Flavinha, uma amiga de oito anos, sempre procura por mim assim que adormece:
– Tio César, quero muito crescer em paz para servir-me com sabedoria, servindo ao nosso Mestre Jesus! Sábia menina. E sempre a recebo repetindo os versos de uma canção que cantarolamos por aqui:
“Dorme vaso de barro
Enquanto livre a alma
Se vai. Vai em busca dos
Seus, vai em busca dos
Tecidos que tece nos dias,
Nas horas, nas lidas, na vida.
Alma liberta que voa aprendendo
Os belos vôos do porvir,
Não pouse aqui e ali. Pouse no alto
No mastro erguido, na bandeira
De luz onde grafadas estão
As belas lições de Jesus!”
“O tempo é a nossa bênção... Com os dias coagulamos a treva ao redor de nós e, com os dias, convertê-la-emos em sublimada luz...”
André Luiz
Ação e Reação - FEB – 2004 – Cap. 10
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