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Eternos Peregrinos - Capítulo 3

Entre o Perdão e a Vingança

​​

Hernandez Garcia andava preocupado com o faturamento da sua rede de lojas. Acostumado a altos lucros, via naqueles tempos algo estranho acontecer. Seus produtos eram adquiridos com o melhor critério de escolhas e ainda uma vez mais eram selecionados quando chegavam às prateleiras. Sua clientela, já acostumada ao bom gosto com o qual compunha seus estoques, deixava para comprar em suas lojas todos os presentes ou mimos para as próprias casas. Hernandes sentia-se muito feliz não só pelo próspero negócio como também por atingir seus objetivos de melhor servir à comunidade.

Sua rede era composta por cinco mega lojas, duas no centro da cidade e as outras três nos principais bairros. Seus produtos eram louças, cristais, faqueiros e demais artefatos de vasilhames. Sua esposa, dona. Mora estava prestes a inaugurar uma sexta loja com produtos de cama e mesa. Embora a caída do faturamento estava confiante de que a nova loja atrairia outros clientes assim como aumentaria o leque de opções daqueles já fiéis àquela rede.

Clarice Mendez era a filha do casal. Estava com vinte e dois anos e abandonara a faculdade de letras por problemas de identificação com o curso. Desde menina mostrou-se desinteressada nos negócios da família bem como nos estudos. Algumas vezes repetiu o ano e adorava ficar deitada defronte a uma televisão absorvendo todas as matérias que eram oferecidas sem mesmo seleciona-las. Gostava dos canais de fofoca e também das revistas impressas que falavam do assunto. Conhecia as vidas de todos os famosos e se deliciava com suas algazarras e políticas do aparecimento grotesco muito em voga.

Certa manhã o senhor Hernandes resolveu ficar em casa. A filha, acostumada a acordar lá pelas onze, foi despertada pela auxiliar da casa as nove, a pedido do pai. A menina muito mal humorada apareceu na sala íntima daquela enorme e confortável mansão. Apresentava marcas profundas de desgastes emocionais além daquelas marcas que a pele igualmente já denunciava, num precoce estado de envelhecimento. Senhor Hernandes observou a filha. Na idade dela já havia inaugurado duas lojas. Estava agora com cinquenta e quatro anos, portanto trinta e dois anos mais velho que ela e com vastos conteúdos no campo das experiências. Era um homem rico necessitando realizar-se enquanto pai e chefe de família.

A mocinha muito contrafeita pediu um suco com bolos recheados e a auxiliar foi rápida no atendimento. Se não o fizesse seria execrada mesmo que depois fosse acariciada por aquele espírito de temperamento inconstante.

– Clarice, o que de fato pretende da vida?

– Ainda não pensei nisto não, Hernandez.

– Você já está com vinte e dois anos...

– Por favor, a mesma ladainha de sempre, não.

– Estou precisando de ajuda. Algo de errado está acontecendo. Preciso de pessoas da minha confiança, creio que o problema está na loja de um dos bairros. Quem sabe você...

A moça soltou uma gargalhada estridente.

– Eu?... Não está pensando em me enjaular numa daquelas lojas sem graça não, não é?

– Lojas sem graça, Clarice? Nossas lojas são consideradas as mais modernas. Contratei o melhor design para montá-las e ele nos dá assistência permanente.

– Aquele idiota do Cândido Tuto? Ele não sabe nada. É um aventureiro medíocre.

– Por que está dizendo isto, Clarice. Ele é ótimo profissional.

A moça abaixou os olhos. Naquele gesto estava reservada alguma informação que Hernandez não conseguiu absorver. A menina levantou-se rapidamente do sofá, deu várias voltas na sala procurando as melhores palavras. Estava diante de um homem que ela necessitava aceitar como pai, ao mesmo tempo não queria expor-se desnecessariamente a ele. Em poucos instantes tomou uma decisão:

– Se é só isso o que tem a me dizer, eu vou sair.

– Quase sempre não conversamos. Queria passar para você todo o funcionamento dos nossos negócios, afinal será a herdeira única de tudo o que possuímos e não são apenas as lojas, temos terrenos, prédios, ações e até propriedades no exterior, num patrimônio estimado em muitos milhões!

– Não quero saber de nada. Não ligo para nada disto. Aliás, esta herança será um peso nas minhas costas. Preferia que não tivesse que recebe-la.

Assim dizendo a moça saiu e dali a minutos ouviu-se o roncar do carro e atrito dos pneus na garagem em manobras assustadoras daquela motorista abusada. Hernandes ficou um pouco mais pensando nas atitudes da filha. Porém, o serviço o chamava e precisa dar a ele a devida atenção.

Dois meses depois e as coisas estavam cada vez piores por mais que exercesse autoridade e fosse probo na vida e nos negócios. Os caixas estavam quase sempre vazios enquanto que as prateleiras também. Fazia reuniões com os empregados, com os gerentes e não conseguia obter nenhuma explicação. As vendas eram registradas, porém o dinheiro não aparecia. Gerentes foram demitidos ou substituídos ao mesmo tempo em que muitos antigos empregados perderam seus empregos por não conseguirem explicar o que acontecia. E era claro que alguém tirava que alguém roubava e todos escondiam montando um complô contra ele. Os demitidos, sentindo-se injustiçados, entravam com recursos na Junta do Trabalho e mais e mais Hernandes ia acumulando obrigações trabalhistas. A única loja que apresentava bons resultados era a da sua esposa. Por incrível que pareça os lucros ali eram altos, mas conforme acordos, todos os lucros seriam dela.

Um ano e meio depois as coisas estavam muito mal. Já havia fechado duas filiais e preparava-se para fechar a terceira. Por mais que buscasse explicações não as encontrava. Sua filha havia se mudado para outra cidade. Deixou a residência paterna alegando não suportar as presenças dos pais. Raramente falava com eles e quando o fazia era para solicitar aumento da mesada ou compra de carros novos e importados. Num domingo, Hernandes chamou Mora para uma conversa mais séria. A esposa também mostrou-se arredia e insensível às suas colocações. Aquele empresário estava quase que abandonado não fosse a fidelidade de Marta Cunha, antiga empregada. Esta sim, preocupava-se com a situação das lojas e com os desgastes físico e emocional do seu patrão. Naquele domingo, Hernandes procurou refúgio no coração amigo de Marta Cunha. Ligou para ela e combinaram encontrar-se num recanto da cidade em conhecido ambiente próprio para encontros empresariais. Marta Cunha era viúva, de sorte que não dariam motivos para falatórios.

Ao chegarem ao local, Hernandez desconfiou que Marta Cunha tinha algo muito sério a falar-lhe. Pediram sucos e começaram a conversar sobre a situação dos negócios. Marta Cunha abriu sua bolsa e, de dentro, tirou um folder onde era anunciado confortável hotel cinco estrelas em região costeira daquele estado. Hernandez preocupou-se. Estaria ela convidando-o sutilmente a umas férias naquele hotel em sua companhia? Quis sair. Estaria mais uma vez sendo enganado e principalmente por ela em quem tanto confiava?

– Gosta do aspecto deste hotel? Perguntou-lhe a empregada.

– Sim. Parece acolhedor. É muito bonito.

– Gostaria de conhecê-lo?

Hernandez fez menção de levantar-se e ir embora. Não era homem de envolvimentos extras conjugais e muito menos com empregados. Marta Cunha percebeu a situação:

– Calma senhor Hernandez. Não é o que está pensando.

– Então o que representa tudo isto?

– Acho que o senhor gostaria muito de conhecer este local.

Hernandes começou a perceber que alguma coisa havia por detrás daquela conversa de Marta Cunha. Ela jamais iria sugerir a ele viajar para conhecer um hotel sem uma razão maior. Talvez fosse ela a última pessoa em quem confiar e Hernandes, no dia seguinte, fez uma reserva em nome de outra pessoa e um acompanhante. O hotel era recém inaugurado e desejavam conhece-lo. Reservou a suíte principal

Na semana seguinte aquele homem rumava sozinho para aquele local. Em lá chegando adentrou a suíte e ficou estupefato com a riqueza da decoração. Era altamente luxuoso. Havia piscinas, campos de golfe, parques, salões para conferências, amplos locais para passeios além de praia exclusiva e inúmeros outros atrativos para turistas estrangeiros apreciarem as belezas do Brasil. Ficou umas boas horas conhecendo as dependências daquele local, encantado com o bom gosto ali apresentado. Era tarde quando jantava em confortável restaurante e algo lhe chamou a atenção. Num dos afrescos daquele ambiente encontrava-se pequena placa prateada. Levantou-se e foi ler o que nela estava gravado.

​​“Nossos agradecimentos ao grande design Cândido Tuto. A direção.”

Hernandez era empresário astuto e, num relance viu todo o comportamento estranho da filha, da esposa e relembrou a auto demissão de Cândido quando mais precisava das suas sugestões e vitrines. Pegou o carro e rumou para sua cidade sem perceber que todos os antigos empregados ali se encontravam a serviço daquele hotel. Trocaram suas indenizações pela garantia de novo emprego. Era quase manhã quando chegou. Silenciosamente penetrou sua casa. A filha e a esposa já não estavam fazia tempo. Tinham ido viajar para lugar desconhecido. Hernandez foi até seu escritório e começou a relembrar fatos e empalideceu quando atinou que havia assinado vários papéis em branco a pedido do seu advogado em quem confiava, uma vez que o assistia durante décadas.

– Santo Deus, o que fizeram! Exclamou.

Claro que os terrenos, os prédios, as ações e as propriedades do exterior já não mais constavam na lista do seu patrimônio. Viu ainda que muitas dívidas não haviam sido pagas e que seu patrimônio restante quase não as cobria. A mansão fora vendida e deveria ser entregue em trinta dias. Ficou apavorado. Pegou o carro e foi correndo encontrar-se com Marta Cunha. Esta já o aguardava.

– Você sabia de tudo?

– Não. Só soube poucos dias antes de mostrar-lhe o folder do hotel.

– Por que elas fizeram isto, por quê?

Assim dizendo, Hernandez teve um ataque cardíaco e caiu morto. Seu espírito saiu desesperado do corpo. Gritava, gesticulava e não dava conta do que estava acontecendo. Depois de extintas suas forças caiu, enfim, de joelhos suplicando uma vez mais uma explicação. Um túnel apareceu-lhe e dentro havia conversas e movimentos de vários cenários e pessoas. Havia também luzes, gargalhadas, zombarias e cheiro de moedas. Viu um homem alto e insensível, roubando, matando, extorquindo e destruindo lares. Aquele homem era ele, estranhamente ele. Viu depois Mora e Clarice, escravas abusadas e vilipendiadas em suas mais caras intimidades. Seus maridos eram mortos por aquele homem cruel e clamavam por justiça e vingança. Hernandez abaixou os olhos e chorou copiosamente. Aquele era seu filme.

Tempos depois, numa tenda confortável, ouvia as ponderações de um espírito que, embora amigo, era-lhe desconhecido. E ele dizia:

– Por várias existências passadas foi tirano usurpando a felicidade alheia. Quem usurpa felicidade vê a sua dilacerada. ​

Hernandez precisava agora trilhar o mais difícil e poderoso caminho da redenção que é o entendimento e o perdão. A se perguntava:

– Será mesmo que tenho algo o que perdoar a Mora e Clarice?

A noite chegou e após os funerais de Hernandez, mãe e filha foram comemorar felizes as consumações dos seus planos e as vitórias das suas vinganças. Eram ricas proprietárias. Rapidamente recuperariam o prestígio e a fama da seleta rede de lojas construídas pelo morto. E se enriqueceriam cada vez mais.

Sempre a continuidade dos ciclos. O que será delas no futuro? Sabemos que as Leis Divinas colocam frente a frente mártires e verdugos para os devidos ajustes. Assim, qual será o de melhor sabor: o do perdão ou o da vingança?

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“A vingança é um dos últimos remanescentes dos costumes bárbaros que tendem a desaparecer dentre os homens. Constitui indício certo do estado de atraso dos homens que a ela se dão e dos Espíritos que ainda as inspirem...” Allan Kardec

Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB, 2004 –Cap.12 – It. 9

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