Estrelas Cadentes
Sempre quis saber um pouco mais sobre as estrelas. Desde criança observava aqueles pontos luminosos que se estendem por um infinito insondável para as minhas percepções. Muitas vezes, enquanto as admirava, era surpreendido pelo bastão do velho Cosme que me batia com força nas costas e mandava que eu fosse dormir e descansar, pois que a rotina do dia seguinte seria invariavelmente longa e cansativa. Passei quase toda a minha infância pesquisando aqueles astros. Não possuía nenhum compêndio que servisse de orientação. Aquelas noites na fazenda eram incrivelmente belas pelas presenças das minhas amigas celestiais. Tinha as minhas favoritas. Tinha aquelas que mudavam de lugar, aquelas que eram fixas e as diferenças dos seus brilhos faziam-me nomeá-las. Com isto criei minha própria cartilha. Não era nada científica, mesmo porque não me interessavam essas coisas de densidades, pesos, distâncias, tão a gosto e necessidade dos cientistas. Eu as observava como quem observa casas distantes. Era assim que me sentia. Elas formavam uma grande cidade e devia ser uma cidade muito rica. Assim pensava, assim vivia.
O tempo foi passando. Eu fui crescendo. Outras coisas surgiam, mas minhas amigas jamais deixaram de ser observadas e admiradas pelos meus olhos astutos e atentos. Já contava dezesseis anos quando surgiu na fazenda uma senhora vistosa, cheia de graças apesar dos seus quarenta anos. Era muito linda. Falava pouco, porém acertado. Um dia a encontrei sozinha, assentada debaixo de uma árvore de manga. Olhava para um infinito e chorava. Não me viu. Aproximei-me cauteloso. Não devia assustá-la. Talvez nem devesse estar ali, naquela hora. Aconcheguei-me por detrás daquela árvore e tentei ouvir seus soluços.
Por vários dias repetimos aquele ritual. Um menino ouvindo o soluçar de uma adulta e ambos mudos. Numa noite, voltei sozinho àquele local e olhei para uma das estrelas favoritas e a perguntei:
– Quem é a senhora que chora e por que o faz?
Aguardei a resposta. As estrelas costumam responder nossas interrogações e minha favorita não se fez de rogado, em poucos instantes deixou escapar um feixe de luz e se tornou cadente.
– Uma estrela cadente! Eis a resposta. Bastava agora saber o que significava aquela resposta enigmática. Por várias horas, escondido do velho Cosme, ali permaneci na expectativa que alguma daquelas luzes explicasse-me a resposta. Adormeci e amanheci sob aquele teto gigantesco e rico, infinito e silencioso. O velho Cosme já me procurava para ordenhar as vacas, tarefa primeira. Assim passei o dia pensando na estrela cadente e no seu simbolismo. Não quis voltar a encontrar aquela senhora. Deixei que as coisas acontecessem com naturalidade. Assim, fui para o celeiro debulhar milhos. Era necessário fazer fubá. O milho tem ciclos, se não o moemos na época certa, pode carunchar e isto dá prejuízo. Feito o fubá, renovamos seu ciclo e fabricamos broas e caldos e alimentamos aos ricos e aos pobres, estes, com as sobras.
Lá estava eu, assentado confortavelmente no meu banco de trabalho quando a porta abriu-se devagar. A princípio não me importei. O entra e sai era comum entre os trabalhadores dali. Até podia ser dona Vitalina trazendo-me o agrado do seu café cujos grãos eram sempre moídos na hora. Era saboroso e vinha sempre acompanhado do bolo de frutas que tão bem preparava para as senhoras que moravam na casa sede. Dona Vitalina assumiu com minha mãe o dever de cuidar de mim. Mamãe não suportou a febre tifo e foi alinhar-se no leito do chão.
Não eram dona Vitalina, nem Rita Vargas, a menina que me olhava com olhos de cobiça. Nem o velho Nestor espiando meu trabalho. Era ela, a senhora enigmática tanto quanto a estrela resposta.
– Quantos anos tem?
– Dezesseis. Respondi.
– Há quanto tempo mora aqui?
– Desde que nasci.
Aquela senhora acomodou-se como pode por entre as palhas de milho, numa simplicidade que me encantou. Percebi que desejava conversar. Mas logo comigo? Eu nada podia falar com ela. Não conhecia nada do mundo. Raramente ia até o vilarejo, pois que sempre estava ocupado com alguma coisa. Ela parecia não se importar com nada disto e olhando-me nos olhos estendeu-me as mãos num gesto inesperado. O que desejaria ela? Amar-me? Impossível. Os meninos da minha idade e naquela época nada sabiam sobre o assunto e àquela hora do dia, era muito perigoso e Rita Vargas, com certeza, apareceria, Sempre aparecia quando outra loba resolvia invadir o território que julgava ser seu.
– Eu sou a estrela cadente que você viu naquela noite!
Aquilo me assustou e me deixou absolutamente confuso e atônito. Será que as estrelas fazem-se gentes? Mas, eu conhecia aquela senhora antes de ter visto a estrela cair. Será que ela foi aos céus e caiu para que eu a visse? Ah, como são deliciosos os sentimentos dos meninos puros. Eu era a pureza em busca da verdade. Se o mundo parasse ali, eu estava realizado. Estava próximo de uma estrela que habita os céus.
De novo as surpresas. Aquela senhora estendeu suas mãos e tocou minhas faces morenas de menino observador das estrelas.
– Que bom você não é uma estrela cadente e possivelmente nunca será!
Ser uma estrela estava muito além dos meus sonhos. Nunca havia pensado nisto. E ela me afirmava que jamais seria uma. Olhei-a com atenção. Pedia que me explicasse. Necessitava saber a essência das suas palavras. Mordi lentamente os lábios e depois os soltei. Entreabriram-se e ela me disse:
– Guarde seus lábios. As estrelas cadentes começam a partir dos lábios súplices.
E como se a observasse com mais atenção, concluiu:
– Estrelas cadentes são pingentes decaídos que desgrudam do cosmo e se projetam no caos e somem até que as mãos ternas da natureza os encontrem e lhes dê ocupação.
Um calor diferente começou a subir pelo meu corpo, modificando minha virgindade dando-lhe desejos de não mais ser. Meus suspiros ficaram apressados, minhas pernas começaram a tremer e senti que crescia. Nunca havia vivido algo igual. Rita Vargas não me dava aquelas sensações, o máximo era desejar tocar suas mãos que eu julgava ser de veludo.
– Como vê, por muito tempo ainda serei estrela cadente. Por onde passo deixo o rastro do meu fogo. Foi ai que olhei detidamente para aquela senhora, antes bela, agora feia. Antes nova agora velha. Antes desejável agora desprezível. Tive pena, tive ímpetos de retirá-la dali para que me deixasse em paz com as minhas descobertas.
Levantou-se com calma, antes de sair olhou-me mais uma vez e disse:
– Eu morava numa daquelas estrelas. Eu me perdi pelos excessos. O sexo era meu padrão. Eu me julgava impune. Era a dona da vida. Um dia, depois de muitas insensatezes, descobri-me atormentada e não podia ser mais cidadã daquele lugar. Fui deportada para este aqui, tão rude e pequeno. Tão atrasado e sem graça. Você é puro. Nunca perca a virgindade da alma. A do corpo quase sempre é necessária para que as civilizações se perpetuem. A virgindade da alma, porém, jamais deve ser tocada, pois que ela representa a pureza de Deus em nós. A nossa permanência Nele.
Dito isto, saiu daquele celeiro e deve ter arrumado suas malas e ter ido embora. Nunca soube seu nome e seu endereço e nossa conversa jamais foi revelada para alguém daquele lugar. Casei-me com Vera Nunes. Tivemos filhos e tivemos felicidade.
Às noites continuo olhando para as estrelas. Não quero me importunar com descrições científicas, quero apenas traçar caminhos que me tornem o mais próximo possível delas. Quanto às estrelas cadentes, sempre que as vejo, lembro-me do que vivi naquele celeiro. Fecho os olhos e deixo que caiam. Com certeza mãos ternas e amigas as encontrarão. Que ótimo para aquelas mãos que acolhem! Que triste para as estrelas que caem!
“O sexo é energia da própria vida. Todos nós
somos chamados a administrá-la em nós
mesmos e somos responsáveis pelo
que fazemos com ela.”
Walter Barcelos
Sexo e Evolução, FEB, 2005 –Cap. 2
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