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Parte 1 - Capítulo 2: "Os réprobos"

Atualizado: 9 de ago. de 2023

RESUMO MEMÓRIAS DE UM SUICIDA

PRIMEIRA PARTE

OS RÉPROBOS

CAPÍTULO II - Os réprobos

​Em geral aqueles tiram a própria vida, esperam se livrar de uma vez de mazelas que jugam insuportáveis, dos sofrimentos ​que consideram insolúveis, que se envergonham pela consciência das desonras que possam ter cometido em nome do materialismo.

Eu também pensei assim e me enganei. As lutas, infinitamente mais ríspidas, me esperavam dentro do túmulo a fim de me massacrarem a alma, com merecida justiça. As primeiras horas que se seguiram ao gesto brutal, passaram-se sem que eu pudesse ter noção de mim. Meu Espírito, violentado, como que desmaiara, sofrendo um colapso. Os sentidos paralisaram como se o mundo estivesse acabando, mas mantendo ainda a sensação forte do aniquilamento que sobre meu ser acabara de cair. Fora como se aquele tiro, que até hoje ecoa sinistramente em minhas vibrações mentais, tivesse dispersado uma a uma as moléculas que constituíam meu ser.

A linguagem humana ainda não precisou inventar palavras que expressassem as impressões inconcebíveis que passam a contaminar o "eu" de um suicida logo que o desastre acontece. Nada traduz o estado vibratório e mental desse momento, e para entendê-lo, só tendo vivenciado essa experiência. Nessas primeiras horas, o suicida, semi-inconsciente, sente-se dolorosamente nulo, dispersado em seus milhões de filamentos psíquicos violentamente atingidos. Paradoxos turbilhonam em volta dele, afligindo-lhe a percepções com martirizantes girândolas de sensações confusas.

Perde-se no vácuo... Ignora-se... Sente a profundidade apavorante do seu erro, deprime-se na devastadora certeza de que ultrapassou os limites das ações que lhe eram permitidas praticar, desnorteia-se entrevendo que avançou para além da demarcação traçada pela razão!

É o traumatismo psíquico, o choque que o dilacerou, o qual, para ser minimizado exigirá lágrimas e refazimento até que se reconduza às vias naturais do progresso, interrompidas pelo ato arbitrário.

Pouco a pouco, senti ressuscitando das sombras confusas em que mergulhei. A Consciência! A Memória! Senti-me congelar de frio, batia o queixo. Me faltava o ar, o que me levou a crer que, uma vez que eu quis tirar minha vida, a morte que se aproximava com seus sintomas dilacerantes.

Senti um fedor horrível e uma dor violenta sobre meu corpo inteiro, principalmente no cérebro, perto dos ouvidos - o sangue escorria do buraco causado pela bala do revólver que usei para o suicídio e manchava minhas mãos, roupas. Eu não enxergava nada.

Convém lembrar que meu suicidei pela revolta por me encontrar cego, expiação que considerei superior às minhas forças e uma injusta punição da natureza. Sentia-me, pois, ainda cego; e para piorar meu estado de desorientação, encontrava-me ferido. Só ferido e não morto, porque a vida continuava em mim como antes do suicídio!

Passei a pensar e fazer um retrospecto até à infância. Me sentindo vivo, constatei que o ferimento que fiz tentando me matar foi insuficiente, aumentando assim os já enormes sofrimentos de muito tempo. Achei que estivesse em um leito de hospital ou em minha própria casa. Mas como não reconhecia nada, a solidão que me rodeava, começou a me angustiar profundamente, enquanto pressentimentos me avisavam de que acontecimentos irremediáveis haviam acontecido. Chamei familiares, amigos, enfermeiros, médicos, serviçais, criados, qualquer um que pudesse abrir as janelas do quarto onde estava para eu respirar ar puro, me cobrisse, me desse comida e água. Mas ninguém respondeu.

Horas depois começou um vozerio ensurdecedor, vozes confundidas em atropelos, desnorteadas, como uma assembleia de loucos. No entanto, estas vozes não falavam entre si, não conversavam. Blasfemavam, queixavam-se, reclamavam, uivavam, gritavam enfurecidas, gemiam, choravam desoladoramente; suplicavam, raivosas, socorro e compaixão!

Apavorado, senti arrepios e a transmissão de influências abomináveis, vindas desse cenário conturbado, formando uma corrente. Esse coro me trouxe tanto terror que tentei fugir tateando nas trevas. Mas algo como raízes vigorosas plantavam-me naquele lugar úmido e gelado e não conseguia me mover. Cadeias pesadas me escravizavam.

Aliás, como fugir se estava me desfazendo em hemorragias internas, com as roupas manchadas de sangue, e cego?! Como aparecer em público nesse estado tão repugnante?

Entreguei-me às lágrimas e chorei angustiosamente, sem saber o que fazer para meu socorro. Ao mesmo tempo que me desfazia em prantos, o coro de loucos acompanhava-me, atraindo-me por irresistíveis afinidades... Tentei não ouvir.

Após esforços desesperados, levantei-me. O cheiro penetrante de sangue e vísceras podres reacendeu em torno, me levando às náuseas. Vinha do local onde eu estava dormindo e eu não compreendia como poderia cheirar tão mal o leito onde me achava. Para mim era o mesmo que me acolhia todas as noites...

Atribui o fato ao ferimento, ao sangue que corria... Eu me encontrava empastado de um lodo asqueroso, empapando incomodativamente a roupa que usava. Aliás, com surpresa, reparei que vestia roupas de festa. Não entendia como um simples ferimento, mesmo com tanto sangue, pudesse ficar tão podre, sem que meus amigos e enfermeiros providenciassem a devida higienização.

Inquieto, tateei na escuridão com o intuito de encontrar a porta de saída e tropecei, num montão de destroços. Instintivamente me curvei para o chão para ver o que era e imediatamente e loucura tomou conta de mim. Comecei a gritar e uivar como um demônio enfurecido. O montão de escombros era nada menos do que a terra de uma cova recentemente fechada! Não sei como, estando cego, pude entrever, em meio as sombras que eu me encontrava num cemitério! Sussurro macabro, como uma sugestão da própria consciência repercutiu pelo meu ser: vejo-me, a mim próprio, em estado de decomposição, morto dentro de uma sepultura, justamente aquela sobre a qual acabava de tropeçar!

Fugi desesperado, enquanto gargalhadas estrondosas, de indivíduos que eu não enxergava, explodiam atrás de mim e o coro perseguia meus ouvidos torturados, para onde quer que me fosse. Como louco que realmente me tornara, eu corria, corria, enquanto aos meus olhos cegos se desenhava meu próprio cadáver apodrecendo no túmulo, empastado de lama gordurosa, coberto de asquerosas lesmas que, vorazes, lutavam por saciar nas suas feridas a fome.

Busquei reproduzir a cena do meu suicídio mentalmente, como se por uma segunda vez eu realmente conseguisse morrer. Mas nada havia capaz de apagar aquela visão! Na fuga, ia entrando em todas as portas que encontrava abertas, a fim de me esconder. Mas era enxotado a pedradas sem poder distinguir me destratava. Vagava pelas ruas tateando aqui, tropeçando ali, na mesma cidade onde meu nome era endeusado como o de um gênio. ​

Ouvi comentários e críticas dobre minha morte. Voltei a minha casa. Surpreendente desordem estabelecera-se. Objetos de meu uso pessoal, livros, manuscritos, estava tudo fora do lugar e isso me enfureceu. Me encontrei estranho em minha própria casa! Procurei amigos, parentes e me surpreendi com a frieza e descaso com que lidaram com minha morte. ​

Procurei então hospitais, porque sofria, sentia febre e loucura, mal-estar. Mas negavam- atenções, despreocupados e indiferentes ante minha situação.

Repreensões azedas saíam em vão de meus lábios acompanhadas da apresentação, por mim próprio feita, do meu estado e das qualidades pessoais que meu incorrigível orgulho acreditava serem irresistíveis: alheios, ninguém me concedia sequer um olhar!

Sentia-me incompleto! Eu perdera parte de mim mesmo, meu próprio corpo, que estava apodrecendo na escuridão de um túmulo!

Me debrucei soluçante sobre a sepultura que guardava meus despojos corporais, e tive convulsões de dor e de raiva, compreendendo que me suicidara, que estava sepultado, mas que continuava vivo e sofrendo mais, muito mais do que sofria antes, monstruosamente mais do que antes do gesto covarde e impensado!

Cerca de dois meses vaguei desnorteado. Ligado ao corpo que apodrecia, sentia todas as necessidades físicas do encarnado sem poder saciá-las jamais. Mesmo cego, via fantasmas perambulando pelas ruas, chorosos e aflitos, e, às vezes, terrores tão loucos mexiam com meu campo vibratório a ponto de fazê-lo parar, o que me fazia desmaiar. Desesperado, me entregava cada vez mais ao desejo de desaparecer, de fugir de mim mesmo, incapaz de raciocinar que meu corpo físico foi realmente aniquilado pelo suicídio; e que o que agora eu sentia apenas se confundia com ele, porque as leis naturais de afinidade não destroem o espiritual, relicário onde se arquivam nossos sentimentos e atos, nossas realizações e pensamentos, a Alma eterna e imortal como Aquele que de Si Mesmo a criou!

Certa vez em que ia e vinha, tateando pelas ruas, irreconhecível a amigos, pobre cego humilhado graças à desonra de um suicídio; mendigo na sociedade espiritual; angustiado fantasma vagabundo, sem lar, sem abrigo no mundo dos Espíritos; exposto aos perigos deploráveis que também há; perseguido por entidades perversas, que desbaratam as sociedades terrenas e arruínam os homens levando-os às tentações mais torpes e me deparei com uma multidão.

Parecia ser de noite, embora fosse como se enxergasse mais pela percepção dos sentidos do que mesmo pela visão. Aliás, eu me considerava cego, mas possuía capacidade para tantas torpezas enxergar, ao passo que não a possuía para reconhecer a luz do Sol e o azul do firmamento!

Tentei recuar, mas ela depressa me envolveu, misturando-me ao seu todo para absorver-me completamente em suas ondas! Fui levado, empurrado. Apenas me inteirava de um fato: estávamos guardados por soldados que nos conduziam. A multidão acabava de ser aprisionada! Milicianos montados conduziam-nos à prisão.

Protestei contra a violência, bradei que não era criminoso e enumerei meus títulos e qualidades. Mas os cavaleiros, se me ouviam, não se dignavam responder. A frente o comandante, abrindo caminho dentro das trevas, empunhava um bastão no alto do qual flutuava pequena flâmula, cuja inscrição não conseguíamos ler.

A caminhada foi longa e o frio cortava. Misturei minhas lágrimas e meus gritos de dor ao coro. Pressentíamos que jamais poderíamos escapar. Até que entramos por um vale profundo, onde precisamos nos enfileirar de dois a dois. Cavernas surgiram de um lado e outro, e todas numeradas. Tratava-se, certamente, de uma estranha "cidade" em que as habitações seriam cavernas, dada a miséria de seus habitantes. Mas tudo ali estava por fazer e não se distinguiria terreno, só pedras, lamaçais, sombras... Sob os ardores da febre cheguei a pensar a região parecia um recôncavo da Lua.

Seguimos e chegamos no centro de grande praça encharcada onde os cavaleiros pararam. Com eles estacou a multidão. Em silêncio se afastaram todos, abandonando-nos ali. Confusos e atemorizados, tentamos nos afastar também. Mas foi em vão! As ruelas, as cavernas e os pântanos formavam um labirinto em que nos perdíamos.

Sentia-me envolvido num horrível pesadelo, e, quanto maiores esforços tentava para racionalmente explicar-me o que se passava, menos compreendia. Meus companheiros eram hediondos, feios, esquálidos, desfigurados pela intensidade dos sofrimentos; desalinhados, seriam irreconhecíveis por aqueles mesmos que os amassem, aos quais repugnariam! Pus-me a bradar desesperadamente, acometido por uma fobia.

O homem normal não será capaz de avaliar o que padeci desde que entendi que o que via não era um sonho. Era uma realidade criada por uma falange de réprobos do suicídio aprisionada no meio ambiente cabível ao seu crítico estado, como caridade para como gênero humano, que não suportaria, sem grandes confusões e desgraças, a intromissão de tais infelizes em sua vida cotidiana!

Efetivamente, no além-túmulo, as vibrações mentais longamente viciadas poderão criar e manter visões e ambientes nefastos, pervertidos. Se, além do mais, trazem os desequilíbrios de um suicídio, a situação poderá atingir proporções Inconcebíveis.

Criaturas disformes - homens e mulheres –caracterizadas pela alucinação de cada uma, trajando roupas empastadas do lodo das sepulturas, com feições alteradas e doloridas. Uma localidade envolvida em densos véus de penumbra, gélida e asfixiante, onde se juntam habitantes de além-túmulo abatidos pelo suicídio, ostentando, cada um, o resultado do gênero de morte escolhido para tentar enganar a Lei Divina – lei que lhes concedeu a vida corporal terrena como preciosa ferramenta de progresso e instrumento para a remissão de faltas do passado!

Pois era assim a multidão de criaturas traduzindo, de quando em quando, em cacoetes nervosos, as ânsias do enforcamento, esforçando-se, com gestos instintivos, para livrarem o pescoço dos farrapos de cordas que se refletiam nas repercussões perispirituais.

Aqueles, indo e vindo como loucos, em correrias espantosas, bradando por socorro em gritos, julgando-se envolvidos em chamas, apavorando-se com o fogo que lhes devorava o corpo físico. Estes últimos, porém, eu notava serem, geralmente, mulheres.

Outros ainda com o peito ou o ouvido, ou a garganta banhados em sangue, que nada conseguia verdadeiramente fazer desaparecer das sutilezas do físico-espiritual senão a reencarnação reparadora. Preocupados em estancar aquele sangue jorrante, ora com as mãos, ora com as vestes ou outra qualquer coisa sem, no entanto, jamais conseguirem, pois tratava-se de um deplorável estado mental.

E ainda outros sufocando-se na asfixia do afogamento, bracejando à procura de algo que os pudesse socorrer, como na hora extrema, ingerindo água em goles ininterruptos, exaustivos, prolongando indefinidamente cenas de agonia selvagem.

E o leitor perdoe estas minudências talvez desinteressantes para o seu bom-gosto literário, mas úteis, certamente, como advertência ao seu possível caráter impetuoso, chamado a viver as inconveniências de um século em que o suicídio se tornou mal endêmico. Cumprimos um dever sagrado, tão-somente, procurando falar aos que sofrem, dizendo a verdade sobre o abismo que, com malvadas seduções, há perdido muita alma descrente em meio dos desgostos comuns à vida de cada um!

Bem próximo ao local em que estava, destacava-se meia dúzia de desgraçados que haviam se atirado sob um trem. Trazendo os perispíritos desfigurados, monstruosa aberração, as vestes em farrapos esvoaçantes, cobertos de cicatrizes sanguinolentas, retalhadas. Enlouquecidos por sofrimentos superlativos pois o terrível gênero de suicídio, dos mais deploráveis que temos a registrar em nossas páginas, abala tão violenta e profundamente a organização nervosa e sensibilidades gerais do corpo astral, que entorpece, graças à brutalidade usada, até mesmo os valores da inteligência, que, impede de orientar-se em meio do caos que se formara ao redor de si!

Cada um, no Vale Sinistro, vibrando violentamente e retendo com as forças mentais o momento atroz em que nos suicidamos, criávamos os cenários e cenas que vivemos em nossos derradeiros momentos de homens terrestres. Tais cenas, refletidas ao redor de cada um, levavam a confusão à localidade, espalhavam tragédia e inferno por toda a parte.

Em várias sessões práticas em organizações espíritas do Estado de Minas Gerais, os videntes afirmaram que não percebiam apenas o Espírito atribulado do suicida, mas também a cena do próprio suicídio, desvendando-se às suas faculdades mediúnicas o momento supremo da trágica ocorrência. - (Nota da médium)

Homens e mulheres transitavam desesperados: uns ensangüentados, outros contorcendo-se no suplício das dores pelo envenenamento, e, o que era pior, deixando à mostra o reflexo das entranhas corroídas pelo tóxico ingerido, enquanto outros mais, incendiados, a gritarem por socorro em correrias insensatas, traziam pânico ainda maior entre os companheiros de desgraça, os quais receavam queimar-se ao seu contacto, todos possuídos de loucura coletiva!

E coroando a intensidade desses martírios, as penas morais: os remorsos, as saudades dos seres amados... E as penas físico-materiais: a fome, o frio, a sede, a fadiga, a insônia... Necessidades imperiosas, desconforto de toda espécie, a visão do cadáver apodrecendo, seus fedores asquerosos, o impacto mental dos vermes a consumirem a carne...

Essa escória trazia, pendente de si, fragmentos de cordão luminoso, fosforescentes, despedaçados, como arrebentados violentamente. Aí a desorganização do estado de suicida, pois o cordão fluídico-magnético, que liga a alma ao envoltório carnal, somente estará em condições para separar-se do corpo na morte natural, o que então se fará naturalmente, sem choques, sem violência.

Com o suicídio, porém, rudemente arrancado, despedaçado quando ainda em toda a sua pujança fluídica, produzirá grande parte dos desequilíbrios, pois a reserva de forças magnéticas não se havia extinguido ainda, o que leva o suicida a sentir-se um "morto-vivo" na mais expressiva significação do termo. Tão deplorável estado de coisas prolonga-se até que as reservas de forças vitais e magnéticas se esgotem, o que varia segundo o grau de vitalidade de cada um. Só o tempo, com extensa cauda de sofrimentos, conseguirá corrigir.

Um dia, eu e muitos outros companheiros de minha falange estávamos incapazes de resistirmos por mais tempo a tão desesperadora situação. Urgência de repouso fazia-nos desmaiar frequentemente, obrigando-nos ao recolhimento em nossas desconfortáveis cavernas. Foi quando ouvimos um rumor daquele mesmo "comboio" que já em outras ocasiões havia aparecido em nosso Vale.

Eu compartilhava o mesmo local com quatro outros portugueses, e, no decorrer do longo martírio em comum, tornáramo-nos inseparáveis. Dentre todos, porém, um sobremaneira me irritava? apesar da situação precária usava monóculo, fraque bem talhado e respectiva bengala de castão de ouro, que o tornava pedante e antipático. Eu, porém, esquecia-me de que continuava a usar meus trajes dos dias cerimoniosos, os bigodes fartos penteados... Confesso que, então, apesar da longa convivência, lhes não conhecia os nomes. No Vale Sinistro a desgraça é ardente demais para que se preocupe com a identidade alheia...

Surgiram, conforme os rumores, os carros brancos, rompendo as trevas com poderosos holofotes. Estacionou o trem caravaneiro na praça lamacenta. Desceu um pelotão de lanceiros. Em seguida, damas e cavalheiros, que pareciam enfermeiros, e mais o chefe da expedição. Silenciosos e discretos iniciaram o reconhecimento daqueles que seriam socorridos. A mesma voz austera fez a chamada dos que deveriam ser recolhidos, os quais, ouvindo os próprios nomes, se apresentavam por si mesmos. Outros, porém, por não se apresentarem a tempo, precisavam ser procurados. Rua número tal... Os obreiros da Fraternidade consultavam um mapa, iam rapidamente ao local indicado e traziam os mencionados, alguns carregados em seus braços generosos, outros em padiolas...

De súbito ressoou o meu nome, chamado para a libertação! Em seguida, ouviram-se os dos quatro companheiros que comigo se achavam presentes na praça. Foi então que lhes conheci os nomes e eles o meu. Disse a voz longínqua - Camilo Cândido Botelho - Belarmino de Queiroz e Souza - Jerônimo de Araújo Silveira - João d'Azevedo - Mário Sobral.

Foi entre lágrimas de emoção indefinível que subi os pequenos degraus da plataforma que um enfermeiro indicava, enquanto os policiais fechavam cerco em torno de mim e de meus quatro companheiros, evitando que os desgraçados que ainda ficavam subissem conosco ou nos arrastassem no seu turbilhão. Entrei. Eram no carro amplo, cômodo, confortável. Ao centro quatro os enfermeiros, que ali permaneciam a fim de guardar-nos. Nas portas de entrada lia-se a legenda: Legião dos Servos de Maria.

Em pouco a tarefa dos abnegados legionários estava cumprida. Não contivemos as lágrimas, porém, ainda ouvindo o ensurdecedor coro desesperado dos desgraçados que ficavam, por não suficientemente desmaterializados ainda para atingirem camadas invisíveis menos compactas.

Senhoras nos acompanhavam, por nós velando durante a viagem. Falaram-nos com doçura, convidando-nos ao repouso, afirmando-nos solidariedade. Acomodaram-nos cuidadosamente nas almofadas das poltronas, quais desveladas, bondosas irmãs de Caridade... Afastava-se o veículo... A pouco e pouco a cerração de cinzas se ia dissipando aos nossos olhos torturados, durante tantos anos, pela mais cruciante das cegueiras: - a da consciência culpada! Apressava-se a marcha... O nevoeiro de sombras ficava para trás como pesadelo maldito que se extinguisse ao despertar de um sono penoso... Ventos fertilizantes sopravam, alegrando o ar... Deus Misericordioso!... Havíamos deixado o Vale Sinistro!...

Comovido e pávido, pude, então, elevar o pensamento à Fonte Imortal do Bem Eterno, para humildemente agradecer a grande mercê que recebia!

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