Memórias de Um Suicida
Parte I – Réprobos
Capítulo IV – Jerônimo Araújo e Família
Camilo e os demais pacientes ainda se encontravam o hospital e sentiam saudades imensas de suas famílias. Muitas vezes inconsoláveis, eram reanimados por Roberto de Canalejas e Joel Steel, que tentavam suavizar a situação relembrando ser esta uma contrariedade passageira.
Conseguiam receber as preces e sentimentos amorosos de seus entes queridos, tanto encarnados quanto desencarnados e isso era passado através de uma espécie de tela de TV muito mais avançada, que refletia uma luminosidade que trazia não só a imagem, mas a personalidade e a consciência do emissor.
Às vezes, quem menos esperavam os surpreendiam com emanações sinceras enquanto outros, mais chegados, não os acessavam pelo pensamento. Ficavam por vezes angustiados por não receberem comunicação de amigos e familiares, aumentando a saudade. Viam mais desconhecidos, principalmente desencarnados da própria região e de outros orbes, e encarnados fazendo correntes de preces. Espíritos em aprendizado, assistidos por mentores, podiam visitá-los no hospital, o que permitia que fizessem boas amizades.
O suicida, é percebido na vida espiritual como alguém que falhou e que está à margem da sociedade em que se encontra ao desencarnar. Estará fadado a passar por processos que visarão reequilibrar a desorganização perispiritual ocasionada pelo ato impensado. Pelo entendimento da sociedade terrena, ele será um sentenciado:
- Sem regalias
- Que passará por um plano expiatório penoso
- Que terá apenas a presença dos educadores até expurgarem os efeitos do suicídio.
O capítulo fala de um dos primeiros grandes aprendizados que os personagens tiveram logo ao chegar no hospital:
Roberto de Canalejas os convidou para uma reunião com o Diretor e Jerônimo, com um mau humor crescente, se recusou a participar, pois só se interessava por notícias da família. Também vinha recusando os tratamentos. Delicadamente foi informado que aquele era apenas um convite e não uma ordem, e os demais se envergonharam do amigo e agradeceram, honrados.
Jerônimo pediu que Roberto encaminhasse à diretoria uma petição para que solicitasse pessoalmente uma visita à família, pois não recebia notícias.
Conseguiu uma conversa com o diretor e, rebelde e indisciplinado, exigiu o terno em que chegara vestido, pois não queira se apresentar com as vestes da enfermaria. Muito sério e pesaroso, Joel entregou as roupas ao comerciante e saíram.
Foi permitido aos demais pacientes que acompanhassem Jerônimo pelas telas a título de aprendizado. Os instrutores enfatizaram que ninguém é proibido de ir à Terra naquele momento, mas que é altamente recomendado que não vão! Todos sentam em uma sala com o aparelho magnético, tal qual uma peça teatral.
Na tela, viam Joel caminhando com Jerônimo para a saída do hospital rumo ao gabinete de Teócrito, de estilo indiano e cheiro agradável - o que também podia ser sentido através do aparelho. Ao ver o diretor, Jerônimo fica nervoso, esboça uma fuga e é impedido por Romeu, seu assistente.
Sereno, de características Hindus e dono de uma energia quase soberana, Teócrito recebe o requerimento de Jerônimo e começa a avaliar, quando é interrompido com sua fala rebuscada e seu ar agressivo rogando a visita aos seus filhos e esposa.
O diretor olha aquele que demoraria a disciplinar sua alma com lágrimas nos olhos. Esclarece que foi homem, sofreu e aprendeu com essas dores e com renúncias. Tendo vivido mais vidas, sofreu mais e adquiriu mais experiências. Hoje trabalha com Maria e é apenas um irmão mais velho de Jerônimo. Nem melhor nem pior.
Teócrito imagina-se no lugar do réprobo e ouve as solicitações sem censurar, mas recomenda que não saia do local de descanso e refazimento por enquanto, evitando as influenciações densas do ambiente terreno.
Jerônimo insiste e jura que voltará logo.
O diretor reforça que o irmão precisa primeiro reequilibrar seus impulsos e dominar suas vicissitudes. Sugere que se submeta primeiro aos tratamentos, assim como os outros, e que aceite ir à reunião de logo mais.
Jerônimo insiste novamente, dizendo que não conseguirá serenidade para nenhum projeto futuro sem saber antes como a família está.
A questão é que se deixavam de fornecer notícias da família à Jerônimo é porque este não estava preparado para suportá-las. Escolhendo ele ir, estava abrindo mão de toda a proteção misericordiosa e ficando vulnerável a qualquer tipo de tristeza e dor.
O diretor sabe que a lição será amarga, mas que somente assim, satisfazendo seus caprichos terrenos, lhe será possível iniciar o progresso.
Os demais, assistindo tudo pela tela, julgam a má educação do amigo. Os assistentes concordam que regras sociais são importantes, mas acrescentam a título de ensinamento p ara o grupo, que isso não é tudo: os sentimentos depurados, os pensamentos elevados ao Alto e uma moral elevada são primordiais para a evolução do espírito.
As notícias dos familiares normalmente só podiam ser mostradas se fosse para o bem dos pacientes. Tentavam apenas proteger o enfermo de algo que o feriria sem necessidade, pois ele precisava primeiro se fortalecer para depois encarar a realidade.
Foi solicitado então que Ramiro de Gusman, chefe das expedições do Vale, e mais um soldado o acompanhassem, além de alguns milicianos. Jerônimo ignorava toda essa preparação dada a auto-obsessão vivida pela vontade de ver a família. Isso aguçava as principais características do suicida na Terra e o ligava a todas as frivolidades terrenas.
No caminho, os amigos acompanhavam um trajeto assustador de lama, buracos e desfiladeiros – tudo projeções mentais de seres de energia densa que se encontravam por lá. Jerônimo nem percebia. Passavam por entidades enraivecidas que queriam atingir a carruagem por imaginarem que lá dentro estavam seres mais “felizes” que eles próprios. Mas o emblema da Legião de Maria os afastava por respeito, medo ou simplesmente despeito.
Ao avistarem Portugal pela tela, todos os suicidas emocionam-se e agradecem a Deus pela lembrança. Mesmo pela tela, sentem-se fazendo parte da comitiva que acompanha Jerônimo. Chegam à casa, e o homem, agitadíssimo, sobe apressadamente a escadaria e corre em busca de sua filha caçula. Chama a filha e ninguém responde.
Sente solidão e desoladora frustração. Não há ninguém. Apenas sombras e vultos estranhos de indivíduos desencarnados e agora lá moram. Percorre a casa toda e acha um calendário que aponta o ano de 1903. Nesse momento, tonteia-lha o raciocínio por perceber que havia perdido a noção do tempo no turbilhão mental do suicídio. Só se recordava do ano do acontecimento: 1890.
Jerônimo corre para a rua , apavorado pelo choque, e é barrado pelos lanceiros, que impedem a sua fuga e o direcionam novamente para o carro. Lá fora, seres desencarnados e inferiores escarnecem de seu engano e a espiritualidade amiga decide não interferir. É necessário esse choque.
Os zombeteiros acusam Jerônimo, contando que seus credores tomaram a casa, que seu filho Albino está preso, que sua caçula Margarida está se prostituindo no Cais da Ribeira, explorada pela própria mãe, Zulmira. Que a outra filha, Marieta, está casada e vive na miséria, com filhos doentes e espancada pelo marido bêbado. Arinda é criada de hotéis baratos.
Jerônimo então implora que o levem para ver Albino, que tinha apenas 10 anos quando o pai tirara a sua própria vida. Está lá na prisão, esquálido e embrutecido pelos sofrimentos causados por seus desvios de conduta e chora envergonhado.
A presença daquele espírito faz com que Albino comece a recordar o passado, satisfazendo o desejo do pai de saber tudo que ocorrera desde sua morte até aqui. O rapaz ora e pede perdão a Deus, se lamentando pelas faltas de perspectivas desde a morte do pai, inclusive a fome, frio etc. Chegara a procurar amigos da família, mas em vão, porque estava marcado pela desonra. Questiona em voz alta o ato do pai e pensa q se não fosse este ato, a situação da família estaria diferente.
Essas palavras soam como estiletes no coração de Jerônimo e se transformam em uma culpa terrível. Desorientado, tenta falar com o filho, suplicar perdão, aconselhá-lo e melhorar a sua situação. Albino apenas deixa rolar o pranto e Jerônimo chora também, emitindo vibrações dramáticas que, sem querer, atingiam o filho, que começa, até mesmo, a ter ideias suicidas.
Ramiro de Gusman interfere, tirando de Jerônimo a visão de Albino. Pondera que retorne ao Hospital para reequilibrar-se, mas Jerônimo não aceita os conselhos e, com a mesma empáfia, exige ver Margaridinha.
No Cais da Ribeira, vê as pessoas indo e vindo. Mulheres despreocupadas e insolentes, transeuntes e, entre eles, Zulmira, gritando com Margaridinha. A menina veste roupas simples e imundas e Zulmira, como uma quase senhora, porém portando-se como uma das “meninas” que lá vivem.
Mãe acusava filha de roubar parte do pagamento, enquanto esta apenas chorava e tentava se defender. Margarida é então esbofeteada. Jerônimo tenta interferir, repreende a mãe e consola a filha, mas nenhuma das duas o veem ou ouvem, e vão para casa.
A jovem fica só e o pai cai em pranto. Assim como o Albino, a proximidade de Jerônimo traz à tona as lembranças da menina, hoje com 20 anos, e mostram toda a mágoa que o preenche de culpa – castigo trazido pelas consequências do seu selvagem gesto.
Tendo perdido o pai aos 7 anos, Margarida fica traumatizada e sua mãe, querendo manter a condição da família, começa a se prostituir, carregando consigo a filha, além de trabalhar com negócios escusos.
A menina, dona de um coração bom e de boa índole, sofre por não conseguir agir em defesa própria. Sente falta do pai e, com sua presença, pensa em toda a dor e sequelas que o suicídio trouxera, deixando transparecer pro Jerônimo todo o desespero que vive.
Era o máximo que podia suportar. Jerônimo sente-se abominavelmente ferido. Remorsos violentos fazem acordar a dor da compaixão. Não podendo auxiliar sua filha, lança-se à loucura da inconformidade, entregando-se à alucinação.
Nesse momento, os lanceiros o cercam novamente para impedir sua evasão, enquanto Ramiro, como pai que fora, se compadece da menina e começa a emanar energias confortadoras que a fazem dormir tranquilamente. Ramiro, então, se vira pra Jerônimo e mostra que sua proximidade com os filhos nesse momento poderia gerar uma carga magnética tão forte que os levaria a replicar seu gesto fatal e sugere que retornem.
Jerônimo, então, se entrega, pede perdão e diz agora ter entendido. Mesmo assim, não volta mais ao convívio daquele grupo inicial de suicidas
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