SEGUNDA PARTE
OS DEPARTAMENTOS
CAPÍTULO IV
Outra vez Jerônimo e família
Carlos de Canalejas veio nos buscar e sugeriu que a programação do dia se iniciasse pelo Isolamento, onde encontrava-se nosso amigo Jerônimo de Araújo Silveira, para uma visita que o deixaria confortado.
A perder de vista estava o planalto onde a pequena cidade do importante Departamento se encontrava, envolvida em neblinas. Ao longo do caminho flores davam a impressão de que o Departamento Hospitalar, assim como o da Vigilância, eram arredores bucólicos de uma grande metrópole
O tratamento no Isolamento era, como o das demais áreas que visitamos, com base na justiça e na caridade. Os internos encontravam-se asilados atrás daqueles muros imensos, e sofriam as dores impostas pelo desânimo, a revolta e o arrependimento pelos maus atos praticados. Concluíam que o suicídio para nada mais serviu do que para aumentar e prolongar os sofrimentos antes julgados insuportáveis, porque trouxe a decepção de continuarem com vida, mas separados de tudo que amavam. Pode-se afirmar que o Isolamento era especializado nos casos sentimentais... pois encontramos ali os mais variados casos de suicídios desse tipo.
Consternação geral dominava o ambiente. Insatisfeitos, seus hóspedes se caracterizavam por sua falta de resignação e paciência, além de se entregarem à dor sem esforços para vencê-la, com o exagero de um sentimentalismo doentio, buscando sempre novos motivos para sofrer, através de autossugestão.
A direção interna do Isolamento achava-se confiada a um sacerdote católico. Todo o corpo de auxiliares internos era constituído de religiosos católicos, com exceção do corpo clínico, que se compunha de psiquistas iniciados. A diretoria era ocupada por um sacerdote também iniciado nas altas doutrinas secretas, Espírito de escol, possuidor de méritos e benquisto na Legião dos Servos de Maria, além de honrosamente graduado na falange de cientistas que governava o Instituto Correcional Maria de Nazaré.
A disciplina era o principal ponto, pois era necessário que as paixões mundanas fossem afastadas daqueles eternos insatisfeitos. Cabia à Instituição instruí-los para a resignação na tristeza, para as resoluções decisivas e para as renúncias; reconciliando-os ainda com a verdadeira fé cristã, que até então desprezavam. Haviam sido, todos eles, educados, na Terra, sob os ensinamentos católicos-romanos. Em seus corações e em suas mentes não existia local para conceitos outros que não aqueles vindos da Igreja
Sentimentalistas fanáticos e caprichosos, descuidados de qualquer raciocínio sobre assuntos do Alto, mantinham os preconceitos que foram fornecidos pelos catecismos, apaixonando-se intransigentemente por tudo quanto as tradições católicas infundiram. Muitos nem mesmo crença definitiva possuíam, jamais se preocupando com religião, apenas habituados à Igreja pelo comodismo e a tradição.
Seria caridoso, então, que a reeducação de tais mentes se fizesse em ambiente que lhes inspirasse confiança e respeito. O próprio padre lhes falaria do Evangelho da Verdade, para que aprendam que, acima do seu fanatismo dogmático, existem outras realidades que necessitam aceitar para entenderem como venerar devidamente o Criador! O próprio padre instruiria os internos sobre a vida do mundo astral, rasgando os véus do conhecimento verdadeiro.
Sabendo do nosso desejo de visitar o amigo ali retido, Padre Miguel mandou chamá-lo.
Lembramos do Padre, que foi quem confortou Jerônimo na memorável tarde da visita à família, havia cerca de três anos. Irmão Teócrito o chamou naquele dia para ajudar. O diretor do Isolamento explicou que Jerônimo acabava de entrar em antecessora ao restabelecimento.
Após vencer a apatia, ele estará preparado para a repetição das experiências em que
fracassou. Encontra-se sob assistência rigorosa, pois seu invólucro Perispiritual, assim como a própria mente, precisam de profundos cuidados. O corpo clínico o trata
com aplicações magnéticas especiais, além de tratamento moral de reeducação, porque o mal que infelicita Jerônimo, somente com a renovação individual será removido...
A paixão que desequilibradamente nutriu pela esposa e pelos filhos foi instrumento para as grandes expiações sob a Lei de Justiça. Jerônimo amava egoisticamente, fechando o coração contra toda a possibilidade de amparo que a razão poderia trazer... E sabemos que, nem mesmo aos próprios filhos, o homem deverá amar incondicionalmente, com os impulsos cegos da paixão.
Claro que o devotamento à família concede a ele méritos diante do Legislador Supremo. Porém, mais honrosos seriam se houvesse encaminhado os seres amados ao culto legítimo do cumprimento do dever, e não proporcionando-lhes luxos e gozos mundanos, enquanto descuidava da educação moral que deveria prover em primeiro lugar.
Deus dá a autoridade paterna ao homem encarnado e, se tivesse cumprido o sagrado dever de pai, Jerônimo teria evitado o amargor de situações embaraçosas pelas quais se tornou responsável com o ato dramático do suicídio.
Então ele chega, acompanhado por Irmão Ambrósio, atirando-se em nossos braços, comovidamente.
"- Obrigado, queridos companheiros! - exclamou - por terem lembrado de
minha humilde pessoa, tão gentilmente! A visita de vocês toca docemente no coração! Se soubessem quão terríveis têm sido as minhas aflições!”
Abraçamos com efusão, sem saber direito o que falar. Ele nos pareceu modificado, sereno, distinto, diferente de antes. O Isolamento certamente teria a missão de elevar também o nível da boa educação social, como internato conventual que era!
Queríamos interrogar nosso antigo parceiro, sabermos de seus filhos, que ficaram na Terra. Mas o receio de uma indiscrição nos deteve, o que fez que o silêncio se prolongasse após os cumprimentos. Então o virtuoso mentor Santarém quebrou o gelo pedindo a Jerônimo que nos contasse se se sentia melhor e mais reconfortado no amor de Deus, pois partiríamos em breve para outro plano de nossa Colônia e, tínhamos vindo para nos despedirmos. Gostaríamos de levar a impressão de que deixamos para trás um amigo em vias de verdadeiro reerguimento...
Jerônimo curvou a fronte com humildade, concordando, porém, acrescentando que não crê que possamos ser felizes tão cedo, pois o suicídio nos afasta da felicidade quanto maiores forem a revolta e a insubmissão no coração! Reforçou que gostaria que o suicídio tivesse exterminado para sempre seu ser, mas assim não foi. Assim sendo, só restava enfrentar com resignação a amargosa situação por cada um ali criada!
Devido àquele lugar e pessoas, Jerônimo vinha se transformando. Como os demais, passou por muitas amarguras entre uivos de desespero e blasfêmias de réprobo! Mas hoje se sente outro indivíduo, a quem a confiança no amor do Ser Supremo ressuscitou dos escombros da descrença mascarada com pela falsa fé. Ele poderia ser feliz, rodeado pelos excelentes protetores, mas cometeu um crime de duras consequências, e não consegue se sentir satisfeito pois arrependimento flagela suas horas. Confessava aos demais que, como comerciante que foi, falido, traindo a confiança de firmas honestas até autoridades municipais, dando prejuízos às fiscalizações legais e aos direitos alfandegários, praticando o contrabando.
Jerônimo sente vergonha pelo ato indecoroso cometeu perante a sociedade. Sabe que deve e não pagou! Tem compromissos vencidos, empréstimos, contas e letras a pagar!... E nada resgatou até hoje! O peso desta desonra converteu seus dias em torturas.
Felizmente, porém, a Lei da Sábia Providência concede ao Espírito falido meios honrosos para se libertar de situações incômodas e vexatórias como essas, e
Jerônimo, em futuro não muito afastado, poderá reparar tais compromissos, recuperando a paz de consciência, graças à reencarnação.
A prece, recurso aprendido tornou-se indispensável à sua pobre alma, - as súplicas veementes dirigidas a Maria – concederam a trégua que precisava para reunir os pensamentos atropelados pelo desespero e fixá-los no bom raciocínio... acontecimento que foi a chave áurea para a solução dos muitos problemas...
A sorte de seus infelizes filhos, aos quais tanto amava, a conduta de Zulmira, prostituída - eram fatos que levavam Jerônimo à loucura. A prece continuada e humilde corrigiu a anomalia; e, pouco a pouco, recobrou a lucidez do senso.
“- Certo dia, ao entardecer - ia dizendo Jerônimo -, encontrava-me só, perambulando tristemente pelas ruas melancólicas do imenso parque que veem... Aproximava-se o doce, emocionante momento do Ângelus. A unção religiosa sutilmente infiltrou-se em meu ser, reportando-me o pensamento ao seio maternal de Maria, Mãe boníssima dos pecadores e aflitos... O momento da saudação a Maria é fielmente respeitado pelos seus legionários, homenageado com sinceras demonstrações de gratidão nesta Colônia.
Sentei-me na relva, disposto a recolher-me também. Com o coração palpitante de fé aguardei o solene momento da oração. Orei, dessa vez, como nunca. Supliquei à amorosa Mãe do nosso Redentor assistência e misericórdia para meus filhos! Que intercedesse junto a Jesus, no sentido de beneficiar as infelizes crianças por mim abandonadas! Nomeei Margaridinha, minha pobre caçula, atirada à lama das sarjetas pela orfandade em que se vira com o meu suicídio! Lembrei de Albino, atirado a um cárcere tão jovem, porque não tivera um pai digno bastante, para lhe prover caminhos e orientações honrosas; pois eu que me comprometera à nobre missão da paternidade, desonrara a todos com os maus exemplos deixados! Bradei por sua maternal intervenção por eles!
Ofereci como penhor do meu reconhecimento a renúncia a eles próprios, pois reconhecia eu não merecer a sacrossanta missão da paternidade! Me afastar para sempre, se necessário..., mas supliquei que Margaridinha fosse afastada do Cais da Ribeira e Albino não deixasse o desespero levá-lo ao suicídio.
Irmão Ambrósio veio encontrar-me lavado em lágrimas e afirmou que eu deveria perseverar nessas rogativas com bom ânimo e coragem, mantendo as altas vibrações, para que os pedidos repercutissem harmoniosamente nas superiores camadas astrais, irradiando auxílios e bênçãos da dulcíssima Guardiã de nossa Legião.
Na manhã seguinte, com efeito, Irmão Miguel de Santarém visitou-me discretamente, convidando-me participar de algumas de suas reuniões particulares para que, unidos, solicitássemos os favores em torno dos fatos que mais me afligiam.
Assim foi feito: em certo recanto isolado do imenso parque e quando a saudação diária a Maria embalava a quietude harmoniosa do crepúsculo, Irmão de Santarém transmitia em preces sentidas o meu pedido à celestial Senhora.
Deixei assim, por várias vezes, minha alma seguir os traçados luminosos que iam deixando as mentes virtuosas dos meus conselheiros, e acompanhava, vibrante de confiança, as expressões que, do âmago do ser, arrancavam em meu benefício.
Repetiram estas reuniões em segredo. Os nomes saudosos de meus filhos eram pronunciados diariamente! E como era consolador ouvir que a eles caridosamente se referiam os amorosos seguidores do complacente Mestre e Senhor.
E terna esperança, humilde paciência e respeitosa resignação visitaram os meandros do meu ser. Passados alguns poucos dias, tive a surpresa de me chamarem no gabinete do Irmão Diretor, que apresentou-me pequeno pergaminho enquanto eu era informado do que acontecia:
"- Antes de mais nada, dai graças ao Senhor Todo Bondoso e Misericordioso,
caro Jerônimo! Suas mensagens a Maria alcançaram êxitos e eis a resposta de nossa Amável Senhora e Guardiã e instruções do Mais Alto, espécie de programação a ser efetuada em torno dos seus filhos, Albino e Margarida... Com o visto de Irmão Teócrito, como se encontra, hoje mesmo poderemos iniciar a tarefa. . . "
Aturdido com o inesperado da notícia, nada respondi de momento. Segurei o pergaminho desdobrando-o cuidadosamente... Eram quatro páginas as quais cintilavam com caracteres azulados que transmitiam as ordens que a Magnânima Senhora enviara para que minha pobre Margaridinha, assim como Albino, fossem atraídos a um posto de emergência mantido por este Instituto na Terra a fim de se submeterem a um tratamento magnético especial para reajustamento psíquico dos sistemas nervoso e mental, desorganizados pela intensidade dos choques que enfrentaram. Que fossem aconselhados, advertidos, esclarecidos. E que, em torno de ambos, caridosa corrente de amor, simpatia e proteção se estabelecesse, porque o Astral Superior se encarregaria de criar os ensejos necessários aos acontecimentos...
Quanto a Marieta e a Arinda, que me tranquilizasse: eram honestas e
trabalhadoras, encontrando-se ambas harmonizadas com as situações que lhes
cumpriam. Deveríamos sim, socorrer o infeliz esposo da primeira - por quem eu não rogara em minhas ardentes súplicas, mas que não fora esquecido pela Amável Mãe - que era presa de arrastamentos inferiores, que dele faziam o tirano do lar. Severa vigilância se efetuasse em seu favor. Seus obsessores deveriam ser aprisionados e encaminhados às respectivas comunidades astrais...
"- Vemos que é bem árduo o trabalho no Isolamento. Já iniciou o movimento regenerador?..."
Irmão de Santarém adiantou-se sorridente,
"- Sim e com muito bons êxitos, visto que temos a Mãe das Mães como patrocinadora destes casos de redenção... cujas consequências facilmente entrevemos... Assumi a direção com ordens do Irmão Diretor do Departamento, certo de que a intervenção de Maria não nos abandonaria. Naquela mesma manhã foi encaminhada à direção do Departamento uma requisição para auxiliares voluntários, já que os obreiros para
serviços externos hão de oferecer espontaneamente o seu trabalho.
Atendido rapidamente, logo me entendi com os preciosos colaboradores que se apresentaram, todos pela causa do Bem, ficando estabelecido que, antes da delineação do programa, visitaríamos as personagens, estudando todas as faces do assunto e comparando-as com as nossas próprias possibilidades antes de partirmos todos juntos para a Terra...
A luz doce Lua suavemente clareava os caminhos tristes do astral inferior por onde deveríamos transitar. Para o transporte, usamos a levitação lenta, pois as zonas pesadas por onde gravitaríamos não nos permitiriam rapidez.
Com emoção avistamos os contornos da cidade do Porto, envolta em ondas atmosféricas, inundada de sutil torrente de fumaças esgazeadas aos nossos olhos de Espíritos!
Conde Ramiro de Guzman, que chefiava as expedições missionárias no exterior de nossa Colônia, nos levou a um giro pela cidade, pois ele também vivera no Porto. Procurávamos Margarida Silveira pelas imediações do Cais da Ribeira. Jerônimo não fez parte da importante expedição pois não seria prudente! Evitamos assim o dissabor de realidades duríssimas... e Jerônimo atrapalharia, ao invés de auxiliar...
Encontramos Margaridinha em um estado deplorável, em um daqueles antros de vícios e libertinagens. Vendo as cenas lamentáveis, nos angustiamos, tornando-se necessário vigilância mental para que nossas vontades não enfraquecessem, prejudicando a missão.
Torturada, Margaridinha parecia vítima de um novo Calvário, onde também faltavam o conforto e o socorro. Era submetida aos caprichos de verdugos desalmados, que a forçavam a beber vinho e estava seminua, pois as vestes estavam gastas pelas brutalidades dos algozes, e empapadas de vinho; cabelos desgrenhados, olhos alucinados pelos desvairamentos do álcool; boca espumante, era forçada a dançar ao som de guitarras enfadonhas. Se não conseguia fazer direito, dado seu lamentável estado, era duramente esbofeteada.
Lembrando-me de que as instruções recebidas do Mais Alto recomendavam que a pobre menina fosse retirada com urgência daquele ambiente, não vacilei em tomar providências imediatas, lançando mão de medidas extremas.
- Será necessário tirá-la daqui... O Astral Superior recomenda ajuda imediata em torno dela... Adormece-a, meu amigo, com uma descarga magnética forte, usando os elementos fluídicos dos passantes... Dá-lhe aparências de doente grave... e afasta com estes infelizes que a maltratam. O aprendiz sabia operar com certo desembaraço apesar de serem poucos os seus conhecimentos e pequeno o cabedal moral que possuía. Foi chefe de falanges contrárias ao Bem e ao Amor.
Chama-se Osório e se encontra ainda sob nossos cuidados, vivera outrora nos sertões
brasileiros, onde praticava ritos e magias africanas. Convertido, porém, há pouco tempo, à aprendizagem sincera da Verdade, agora se faz obreiro submisso à direção de espíritos de Luz, capazes de guiá-lo à regeneração completa, não só o ajudando a instruir-se como a elevar-se moralmente através de serviços reabilitadores.
Aproximou-se da infeliz, passou-lhe as mãos na altura dos joelhos, como laçando-os. A pobre menina cambaleou, amparando-se a uma banca próxima. Na sequência, o mesmo "passe" repetiu-se à altura do busto e, em seguida, contornando a fronte, toda a cabeça! Margaridinha caiu estatelada no chão, presa de convulsões impressionantes, levando a mão ao peito e gemendo sentidamente. Sem parar enquanto eu distribuía outras recomendações aos demais voluntários, Osório aproximou-se de um dos comensais que se mantinham perplexos ante o incidente, e segredou-lhe algo ao ouvido, com veemência e emoção. O indivíduo sobressaltou-se, exclamando aterrado, criando pânico indescritível entre os boêmios.
- Céus! A coitadinha está a morrer por culpa nossa! . . . Fujamos! Saíram em confusão, empurrando-se mutuamente, deixando a pobre vítima à mercê dos possíveis sentimentos de caridade do proprietário do antro. Margarida estrebuchava e eu e meus dedicados auxiliares nos aproximamos no intuito de beneficiá-la com os bálsamos de que no momento poderíamos dispor. Convém frisar que não éramos sequer pressionados, quer por ela ou pelos presentes do plano material. No entanto, a moça experimentava a ação produzida pela rispidez da descarga magnética necessária ao seu lamentável estado. Aplicamos bálsamos sedativos e tornou-se inanimada, gradativamente acalmando-se, continuando, porém, estendida sobre as lajes do antro, enquanto o taverneiro, apavorado com o acontecimento, providenciava socorros médicos e um leito no interior da casa, pois queria ocultar a verdade em torno do caso, por não desejar complicações com a polícia.
Quanto a nós outros, os servos de Maria, desejávamos vê-la em um hospital
e jamais num cárcere! Por essa razão afastamos a possibilidade da presença de policiais e atraímos um voluntário, que a considerou gravemente doente em virtude de grande intoxicação pelo álcool, e tomou providências humanitárias, pois tecêramos em torno dele corrente de harmoniosa intuição.
E assim foi que a filha do nosso pupilo aqui presente deu entrada em modesto hospital, caridoso bastante para resguardá-la enquanto providenciássemos quanto aos seus dias futuros, guiados pelas inspirações generosas de Maria..."
Jerônimo deveria ser informado de tudo, em ocasião oportuna, embora a caridade houvesse aconselhado sua ausência no local. Nada poderia mesmo ignorar, uma vez que se tornou responsável por tudo que resultou do abandono em que deixou a família e precisava meditar sobre o que ocasionou, para as próximas reparações.
O próprio Jerônimo pediu para que continuassem elucidando os companheiros de jornada com a sequência do seu drama pessoal para também a outros edificar e instruir. A vida de cada um de nós trará ensinamentos sublimes, desde que nos demos ao trabalho de compreendê-la à luz das leis divinas que regem os destinos humanos.
No instante em que Margarida Silveira tombava nas lajes da taverna, seu Espírito foi parcial e temporariamente desligado do corpo e levado para o Posto de Emergência que este Instituto mantém nas adjacências do globo terrestre, onde muitos
enfermos encarnados são curados pela medicina do plano espiritual, para a emenda e consequente regeneração, e muitos corações aflitos e chorosos têm sido consolados, aconselhados, norteados para Deus, salvos do suicídio, reintegrados no plano das ações para que nasceram e do qual se haviam afastado.
Para aí conduzida em Espírito, Margarida foi submetida a exame rigoroso das precárias condições de sua organização - fluídica - o perispírito – e urgente se fazia um
tratamento. Enquanto isso, o corpo carnal também o era pelo médico do hospital terreno.
A benefício do futuro de Margarida Silveira, o estado letárgico se prolongaria por vários dias, o necessário à assistência moral mais urgente que situação exigia. A jovem não se achava, ao demais, verdadeiramente doente, apenas intoxicada pelo álcool. Apresentava órgãos normais, exceção feita do sistema nervoso.
Margaridinha não só não era má como não se amoldava ao vício. Repugnava-o até, ansiando libertar-se dele. No seu caso doloroso, o que havia era tenebrosa expiação, consequência de ações arbitrárias praticadas por ela mesma em encarnações anteriores e que precisavam de reparações através dos séculos, não apenas em sua própria consciência, mas também nos harmoniosos códigos da Lei Suprema.
A profundidade das leis divinas é vertiginosa e a justiça que delas ressalta destila tanta sabedoria e misericórdia, que o pavor se transformará em admiração, se examinado mais de perto! Por mais incômodo que pareça, o Espírito que atualmente conhecem sob o nome de Margarida andou reencarnando como homem e abusou da liberdade, levando a desonra a lares respeitáveis, manchando a reputação donzelas e espalhando o fel da prostituição em torno dos seus passos.
Até que veio um dia em que a Suprema Lei, que não quer a destruição do pecador, mas que ele viva e se arrependa - impediu-o de continuar. Tirou-lhe a liberdade, impelindo-o a renascer sob vestes carnais femininas, a fim de provar o mesmo fel que destilou, poupando tempo precioso na programação dos resgates, por passar por penalidades idênticas às antes impostas pelo seu mal orientado livre-arbítrio! Reencarnou como mulher a fim de aprender, na desgraça de ser desacreditada e abandonada.
"- Se assim foi, como Jerônimo se tornou responsável pelos desastres da filha?..."
"- Porque mesmo apesar do passado da filha, a consciência do pobre pai continuará a acusá-lo duramente!... - "O escândalo há de vir, mais ai do homem por quem o escândalo venha" - asseverou nosso Mestre. Margarida Silveira tinha reparações a testemunhar, é certo; mas, infelizmente, o suicídio de seu pai, desamparando-a, foi o
que a levou a se precipitar nos tristes acontecimentos! A dívida tenebrosa deveria ser
resgatada através do tempo. Poderia não ser obrigatória para a existência presente. O suicídio de seu pai, no entanto, precipitou acontecimentos cuja responsabilidade bem
poderia deixar de pesar sobre seus ombros.
Margaridinha deveria expiar o passado, é certo. Mas não seria necessário que a pedra do escândalo que a devesse atingir fosse engendrada pelo ato praticado pela imprevidência de seu próprio pai.”
Irmão Santarém continuava:
"- Uma vez que a jovem peixeira não se comprazia no vício, fácil foi a nós ajudá-la a reerguer-se e convencê-la à regeneração. Durante os seis dias em que ficou no mencionado Posto, longas conversações estabeleci com ela. Ali ondas magnéticas
favoreciam a retenção de minhas palavras em sua consciência, agindo fielmente sobre
sua memória e levando-a a colecionar, nas camadas caprichosas da subconsciência, todas as recomendações que eu lhe fazia, e executar na ocasião oportuna, o que, de fato, veio a fazer mais tarde, sem perceber, no entanto, que apenas cumpria as recomendações que haviam sido aconselhadas ao seu Espírito durante a letargia em que estivera mergulhado o corpo material, pois, ao despertar, esquecera tudo, como era natural!
Margarida conheceu o recurso salvador da oração como luz redentora capaz de arrancá-la das trevas. Ministrei-lhe educação moral religiosa que ela jamais recebera, falando dos deveres impostos pelo Criador, recordando ainda que, no amor de Jesus encontraria ânimo e bálsamos bastante eficazes para amenizar o que infelicitava sua vida. Infundi-lhe esperanças, coragem para uma segunda etapa em seu destino, confiança no Amigo Celeste que estendia a mão aos pecadores, amparando-os na renovação de si mesmos... e convenci-a de que sua força de vontade exigia ações nobres, capazes de promoverem sua reabilitação perante sua própria consciência. Ela deveria ainda reunir esforços para afastar-se do Porto, mesmo de Portugal!
Era imprescindível que confiasse em si mesma, julgando-se boa e forte para vencer na peleja contra a adversidade!... porque o Céu enviaria ensejos propícios à renovação! O Brasil era terra hospitaleira, e seus portos, como o coração de seus filhos, generosos bastante para acolhê-la. O exílio em solo brasileiro se converteria mais tarde em mansão confortadora...
Convinha despertar Margarida, isto é, fazer seu Espírito voltar à carne a fim de continuar suas tarefas. Como, realmente, não se achava doente, o despertar operou-se natural e suavemente, sob nossa desvelada assistência, tal como se voltasse de prolongado e benfazejo sono. A jovem, porém, mostrava-se penalizada por haver tornado à vida e derramava abundantes lágrimas. Incoercível angústia pesava-lhe sobre o coração.
Após alguns dias decidiu transportar-se para Lisboa à procura de sua irmã Arinda, a que trabalhava num hotel de boa reputação. A situação, porém, apresentava-se difícil para a desventurada jovem, que não possuía recursos para a viagem. Seu passado cheio de máculas e sua infeliz reputação inibiam-na de servir em casas honestas.
Mas como em torno dos desgraçados existem sempre anjos-tutelares prontos a intervir na ocasião oportuna, suas pobres companheiras de enfermaria, as quais, vendo-a chorar frequentemente, arrancaram dela a confissão da situação complicada e
cotizaram-se para conseguir o necessário para transportar-se à capital do Reino.
Arinda acolheu a irmã. Perdoou-lhe o passado, empregou-a no hotel, procurando ensinar as tarefas domésticas para colocá-la futuramente em ambientes familiares.
Acontece, porém, que a filha de Jerônimo vai para o Brasil mais rápido do que se
esperava, pois no hotel hospeda-se uma família portuguesa residente em S. Paulo. Margarida, guiada pela irmã, serve-a com atenção e bondade e ganha a simpatia, sendo convidada a partir para o Brasil, como criada."
Entreolhamo-nos ansiosos, a fitar Jerônimo, que se conservava de fronte curvada, concentrado em pensamentos profundos.
De súbito, Belarmino, cuja alma bondosa foi convertida para a emenda, interrogou:
"- E Albino, Irmão Santarém?... Decerto o Céu concedeu-lhe também alguma
dádiva?..."
"- Albino?!. . . - Disse sorridente o digno sacerdote, como absorvido em grata
recordação. – Albino vai muito bem, melhor muitas vezes do que a irmã! . . . O
cárcere levou-o à meditação, fazendo-o refletir maduramente e a procurar Deus através do sofrimento! Tal como foi feito à irmã, o doutrinamos em nosso campo de repouso, e, facilmente se resignou à dolorosa situação, reconhecendo justa a
punição, pois realmente errara no seio da sociedade. Dedicou-se a leituras e estudos, guiado de perto por uma alma de escol em quem depositamos muita confiança, um médium presentemente encarnado na Terra chamado Fernando...
Ainda nos serviços no Posto de Emergência, instruções foram dadas ao médium a respeito do que deveria fazer a fim de auxiliar-nos em torno do jovem, durante sono profundo. Fernando, que trabalha na inspetoria de polícia, vem se interessando pela ajuda aos encarcerados, aos quais procura assistir e servir. A cada visita que lhes faz, leva esperanças, e lhes acalma a revolta interior com sua palavra inspirada.
Albino sentiu-se atraído por aquelas palavras sobre a Terceira Revelação. Nosso querido agente confortou o rapaz, ministrou-lhe educação moral-religiosa, o que nos
evitou grandes trabalhos em torno do jovem encarcerado...
E ainda fez mais! Possuindo ele relações de amizades sociais, desdobrou-se e obteve as atenções da Rainha D. Amélia, para o infeliz filho do nosso suicida no sentido de torná-lo útil à sociedade, com um pouco de proteção e ajuda fraterna.
Para o progresso moral e espiritual de Albino, no entanto, segundo as instruções que
recebêramos de Mais Alto, a prova do cárcere deveria alongar-se ainda por três anos e após o prisioneiro deverá ir para a África, onde ficará em liberdade, pois no Brasil encontraria demasiadas facilidades, que poderiam afastá-lo da unção em à qual se vem conservando desde que conheceu Fernando e se filiou à magna Ciência da Espiritualidade."
Considerando que os acontecimentos descritos necessariamente influiriam no coração aflito daquele pai suicida, fornecendo-lhe a um mesmo tempo lembranças torturantes e
esperanças reanimadoras, felicitei-o sinceramente pelo êxito das suas preces, louvando ainda, com júbilo, a amorosa solicitude da Virgem de Nazaré.
Perguntei a Jerônimo, abraçando-o fraternalmente, se agora não se sentiria, porventura, mais sereno a fim de cuidar do futuro que já foi bastante prejudicado pelas aflições que lhe trazia a recordação dos filhos. E ele, com o semblante entristecido respondeu:
"- Sim, amigo Camilo! Tão vastos e de tão profundo alcance foram os benefícios recebidos por mim através da assistência aos meus entes queridos, que jamais saberei como agradecer à Mãe Santa do meu Salvador... a não ser que, por misericórdia ainda mais extensa, venha a me transformar em protetor de órfãos e abandonados, evitando que se despenhem pelos abismos em que vi meus queridos filhinhos!
Pois aprendi aqui que o Espírito vive sobre a Terra sucessivas vidas, nascendo e renascendo em formas humanas quantas vezes sejam necessárias ao desenvolvimento. Espero, portanto, fazer isso um dia, na Terra, com outra forma humana: demonstrarei meu reconhecimento criando, reencarnado na Terra, orfanatos amorosos e acolhedores, lares cristãos onde pequeninos órfãos estejam a salvo das dramáticas situações em que meu suicídio arremessou meus filhos! . . .
Reconfortado e agradecido eu estou! Mas, jubiloso, ainda não, porque ainda tenho muitas dívidas a resolver que ainda me corroem de remorsos. Eu não acuso Zulmira, porque também me sinto culpado da sua queda uma vez que a pobreza irremediável, as privações e a fome foram algozes que a perseguiram e venceram, pois não estava preparada para resistir à adversidade. Eu a habituei ao conforto excessivo e contraproducente, à ociosidade que o dinheiro mal dirigido produz! Se eu fraquejei desastrosamente, abandonando-a na desgraça, e escondendo-me debaixo do túmulo cavado pela covardia de um suicídio - quem mais se obrigaria ao dever que era meu?!
Para que Zulmira vencesse à frente da desgraça, defendendo e honrando quatro filhos menores, seria preciso que se houvesse habilitado à luz de princípios elevados, sob a compreensão cristã, como tantas vezes asseverou o Irmão de Santarém. Pobre Zulmira que, como eu, ignorava até mesmo se era criação divina!
A oração é o meu conforto, assim como os estudos que venho fazendo em torno da
reencarnação... E rendo graças a Deus por tudo isso, meu amigo, pois já é muito para quem, absolutamente, nada fez para merecer tanta
misericórdia..."
Irmão de Santarém explicou então como seria daqui para frente:
“Quando, na sociedade terrena, praticamos delitos irremediáveis, ao voltarmos à Pátria Espiritual havemos de nos preparar para mais tarde tornar ao teatro das nossas infrações, em existências posteriores, a fim de recapitular o passado operando de modo contrário ao em que fracassamos. Partindo dessa regra, no caso vertente veremos, necessariamente, meu pupilo em apreço novamente defrontar-se com
a ruína financeira, a desonra comercial, com a pobreza, com o descrédito - motivos estes que ontem o levaram ao suicídio -, a fim de que prove o arrependimento de que se acha. Para que assim seja, a ruína deverá acontecer, no entanto, mesmo com os seus esforços por evitá-la, mas nunca depredando em gozos e vaidades mundanas...
Restará o grave impasse criado com a família, a quem abandonou. A consciência irá aconselhá-lo a desempenhar a reparação, de acordo com os seus próprios sentimentos, pois ele possui o livre-arbítrio.
As pelejas da expiação, no entanto, os dramas que será levado a viver no âmbito das reparações inadiáveis serão agravados por um precário estado de saúde orgânica e moral, males indefiníveis, que a ciência dos homens não removerá, porque serão repercussões danosas das vibrações do perispírito prejudicado pelo suicídio, sobre o sistema nervoso do envoltório físico-material, que então possuirá. É possível que até mesmo a surdez e uma paralisia parcial, que poderá afetar o aparelho visual, assinale seu futuro estado de reencarnado . . . porque ele se matou dilacerando o aparelho auditivo e o corpo astral - o Perispírito - é organização viva e semimaterial, portanto sentirá a brutalidade do ato e modelará o futuro corpo padecendo mentalmente dos mesmos prejuízos..."
Despedimo-nos do Irmão Santarém com as lágrimas e agradecidos pela gentileza das elucidações. Abraçamos Jerônimo e saímos, penalizados com a gravidade da sua situação.
"- Devem encerrar esta série de visitas com uma pequena passada pelo
Departamento de Reencarnação, avisou o velho doutor de Canalejas, pois, dentro de alguns dias mais, deverão realizar o antigo sonho de rever a Pátria e o antigo lar..."
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