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No País dos Renascimentos - Capítulo 1

Renascer é deixar o novo nascer


As idéias e os planos fervilhavam em nossas cabeças. Formávamos um grupo de dez companheiros que buscariam suas redenções em nova oportunidade junto ao corpo físico. Desnecessário dizer que malbaratamos as anteriores oportunidades em idas e vindas cultuando os despautérios, próprios da infância espiritual. Agora teria que ser diferente. Não havia mais tempo para as brincadeiras de roda próprias daqueles que utilizam o tempo como bolas de ping pong que vão e que vêem, num limiar infinito de algum ponto que quantifica o competidor. Pontos isolados que podem ser superados pela competência do oponente. Em se tratando de evolução torna-se necessária a eliminação paulatina das competições entre pessoas. Cada qual compete consigo mesmo na tentativa de vencer o mal, suas entranhas, seus pontos de ignorância, seus efeitos nefastos que retardam a aurora espiritual. Assim, nosso ambiente era festivo. Encontrávamos todos os dias e naqueles encontros formatávamos com mais detalhe nossos futuros passos na crosta terrestre em corpos físicos distintos.

Importante ressaltar que cada um detinha seu mapa reencarnatório. Fora regiamente preparado por mentores hierarquicamente superiores e naquela genética planificada cada um receberia a colheita dos plantios a que se dedicou no pretérito. Posso dizer de mim que chegaria aos braços da mãe preta, eu que fora antigo racista, tribuno ferrenho da eliminação de todo e qualquer contato da raça negra com a branca. Mãe Izaura já sussurrava em meus ouvidos a carícia da sua ternura. Meu futuro lar era pobre, erguido no alto do morro em meio a outros casebres suplicando os olhares dos mandatários. Uma única bica nos entregaria diariamente o fruto do seu manancial divino e seria eu o guardião da bica enquanto criança. Antigamente, quantas tigelas d’água potável arremessei ao léu brincando de mandão da natureza! Os outros nove seriam divididos por entre outras casas em outros bairros, mas todos na mesma cidade. A Cidinha deveria encontrar-me ainda adolescente. Ela estava feliz, eu nem tanto, confesso. Cidinha era antiga gorducha ranzinza, mal educada e mal cheirosa que vivia importunando minha liberdade de senhor feudal. Nossos encontros, às escondidas, davam-se mais pela minha masculinidade que pelo desejo do encontro afetivo. Depois, era bom vê-la desaparecer por entre as árvores e só retornar quando sentisse minha falta. Se não atendesse suas exigências femininas certamente espalharia para os ventos daquela comunidade nossas façanhas aos sons dos pássaros, únicas testemunhas. Assim, Cidinha foi catalogando filhos, doze talvez. Nunca me pediu um centavo. Nem imaginava como os criava e tampouco interessava sua vida e a vida dos nossos filhos. Fiquei sabendo depois da sua absoluta e total lealdade mim enquanto eu era traidor de Anália, mãe de outros quatro filhos. Confusa a história, porém real. Cidinha renasceria agora em um lar abastado e se apaixonaria pelo negro do morro e enfrentaria a família e a sociedade e eu deveria, agora, ampara-la com o devido respeito e leal ao compromisso que assumiria com ela. Cidinha, porém, renasceria com um defeito na perna esquerda que a faria manquitola, porém bela. Os outros oito companheiros, cada qual, teriam seus deveres e compromissos a cumprir.

Chega um determinado momento no processo da reencarnação que já não se pode mais observar os caminhos alheios. Chega o momento em que somos convocados ao renascimento. Pronto. Somos nós e o processo. Nove meses dentro do útero. Nove meses montando um novo corpo, tempo dos esquecimentos necessários, tempo de absoluta confiança em Deus, nós e os mentores que cuidam da gente. Chegou a hora, despedi-me de Cidinha que, alegre, levou-me até o portal da reencarnação. Ela não me contagiou. Percebi ali que nossa vida a dois seria muito difícil, infernal, eu diria.

Bem, o tempo passou. Renasci. A parteira que atendeu minha mãe, dona Aprígia vaticinou logo que seria um moleque travesso, de pernas compridas a saltar pelos córregos e pedras daquele morro. Não errou. Meu reinício foi mesmo de muita molecagem. Molecagem sadia, daquelas que deixam boas lembranças. Aos três anos de idade estremeci certa noite quando desfrutava abençoado sono. Noutro ponto da cidade, numa maternidade iluminada nascia Flávia. Mal colocou a cabeça para o mundo e já espiou em volta a ver se me encontrava. Chorou de aborrecida por não me ver, mas, as enfermeiras, prestativas, trataram logo de acalmá-la com o precioso líquido chamado mingau. A menina já nasceu dando asas à sua imaginação de ser gorda novamente.

Passa-se o tempo. Estava agora com doze anos. Reencontrei dois daqueles companheiros. Olhamos nos olhos e a empatia bateu feitos flocos de neve que adocicam a vida e dão leveza aos seres. Por incrível que pareça e graças às minhas peripécias com a bola de futebol consegui uma bolsa de estudos num conhecido e famoso colégio da capital. Assim fomos estudar no mesmo colégio. Claro que minha mãe morria de felicidade. Quantos meninos daquela vila não podiam nem pensar em tal situação.

Eu olhava para a Candinha. Menina de seus treze anos. Eu já estava com quinze. Garota da minha cor, das minhas raízes, filha de uma vizinha. Candinha era meiga, carinhosa e quando pegou minhas mãos quase dei um grito de tanta felicidade. Juramos nos pertencer no tempo certo. Ela tinha ciúmes das minhas amizades no colégio. Toda gente era branca. Eu e o Marquinhos éramos as exceções. Marquinho era rico e eu, bolsista. Aí já se formava uma diferença. Eu e Candinha íamos sempre ao cinema, domingo depois do futebol. Era o artilheiro do time e cada gol marcado recebia um valor a mais que os companheiros. Era sensacional! Filme, pipoca, guaraná e, depois a pizza. Era sorver numa taça de mel a essência da mais pura felicidade. Mas... E lá vem o: mas... Os nossos amigos da parte de cima não brincam em serviço e trataram logo de terminar com aquele romance nem bem começado.

Numa manhã de aulas, estávamos atentos ao professor de física quando o diretor adentrou a sala. Trazia consigo uma menina meio gordinha, manquitola e com caras de aborrecida.

– Flávia veio para estudar conosco. Quero que a recebam bem! Disse-nos o ditador solitário. Assim o chamávamos. Nunca havia se casado e era estranho como um estranho nas mãos dos salteadores. A moça de doze anos sentou-se numa cadeira bem atrás de mim. Nem vi quando ela passou. Dias depois estava atento a uma carta de amor que escrevia para a Candinha. Quem está amando faz assim mesmo, escreve de manhã, de tarde e encontra à noite. Bem, enquanto escrevia senti uma mão roçar meus cabelos. Estremeci. Quem, a não ser Candinha tinha o direito de fazê-lo? Temi que fosse o Eduardo, um daqueles meus companheiros. Eduardo havia renascido com tendências homossexuais. Confesso que tive receio de ter que perder um amigo de quem gostava muito. Naquela época a prática homossexual era abominável nos portais acadêmicos. Nunca havia sentido a textura das mãos do Eduardo, mas havia sentido a doçura das mãos da Candinha. Não foi difícil perceber que aquela mão era de uma moça. Fiquei quieto. Nos dias seguintes a cena se repetiu até que um dia, aproveitando a desatenção do professor, olhei para ver de quem era. Adivinha? Flávia. Sim ela.

– Você é lindo!

– Sou negro.

– E daí?

Que situação. Desnecessário dizer que a menina fez de tudo até que conseguiu separar-me de Candinha. Com tristeza devolvemos os presentes. Alguma coisa em mim ordenava que fosse assim. Flávia me encantava pelas feições de pedinte do meu afeto. Candinha era mais resoluta e só me queria ver quando a hora fosse nossa. Cedo tomou atitudes de feirante, acompanhando o pai e o irmão. Na feira era requisitada por todos. Candinha era bela, já o disse. Flávia, ao contrário entregava-se de corpo e alma à possibilidade de estarmos juntos.

Anos depois, eu com vinte e ela com dezessete comparecemos à capela da Nossa Senhora da sua devoção e juramos amor eterno. Alguns nos olhavam meio escandalizados, outros nem tanto. A família da Flávia não teve coragem de interpor-se dada a alegria estampada naquelas faces de menina quase deficiente e carente de afeto. Joguei futebol, não nos grandes clubes, mas em alguns que de certa forma ajudaram-me até que conseguisse montar um pequeno mercado de frutas. Afinal de vez em quando, na época da Candinha, ia às feiras e aprendia o ofício.

O tempo passou. Viver com a Flávia não foi de todo ruim. Acho que muitos maridos gostariam de ser tratados como fui e muitas mulheres de serem tratadas como tratei Flávia. Sem termos consciência estávamos acertando um passado bem complicado. Dos doze filhos que tivemos antes apenas três retornaram. Os outros devem ter detestado a possibilidade de me ter como pai. Vivemos um bom tempo. Um dia fomos de novo chamados às contas no tribunal da consciência. A julgo foi suave porque a carga era leve. Meus outros companheiros também retornaram. Dois deles aumentaram a carga, outros não conseguiram nem se livrar daquela que haviam levado e apenas três, incluindo eu, conseguimos superar as dificuldades que nos apresentavam como recursos de solução definitiva aos nossos carmas.

É, mais a vida é dinâmica. Está de novo soando a campainha da reencarnação. Tenho Flávia, tenho Candinha e tenho a Stela. Aquela antiga esposa que traí vergonhosamente quando ainda era menino espiritual. Olho para mim mesmo e vejo como sou carente. Como ainda necessito de escoras para não cair. Não conseguiria andar seguro na nova vida sem a presença de uma esposa ao meu lado. Flávia era o meu afeto cultivado, Candinha o sonho interrompido e Stela a vergonha e necessidade da corrigenda. Com qual das três deveria erguer o meu novo lar? Estava confuso. Tudo era difícil. Pedi ajuda. O Mentor me chamou. Apresentou-me novo roteiro. Achei ótima a decisão. Nos idos de antiga civilização encontrei também Auturá. Grandes débitos eu tinha com aquele coração. Auturá pelejava ainda nas idas e vindas sem uma definição acertada. Não conseguia adaptar-se ao ocidente e foi-me oferecida a oportunidade de ajudá-la enquanto que eu, finalmente, adentraria as academias do conhecimento que enriquece. Seria agora engenheiro agrônomo. Auturá minha esposa fiel e digna, seria professora da nossa língua e da nossa cultura e Flávia, Candinha e Stela, nossas filhas a quem deveríamos amar e conduzir pelos caminhos do bem. Bom lembrar que Cidinha foi antiga companheira de desonras em tempos escusos quando renascemos numa vila antiga, hoje transformada e perdida em suas histrórias.

Como disse a vida é dinâmica e não pode estacionar em nossas paixões vespertinas. Estamos todos nos encaminhando para a fraternidade universal e, lá, todos nos ajudaremos e todos serão solidários no caminho. Espero retornar trazendo na bagagem o amor multiplicado daquelas irmãs que um dia conspurquei suas honras. Elas também aprenderão a me ter como pai e, Auturá, certamente amará nossa pátria e se desvencilhará definitivamente do seu passado civilizatório.

Renascer é fazer nascer em cada um novas oportunidades, novos arraiais, auroras, sorrisos e abraços. Renascerei. Quem sabe aí, bem pertinho de você prezado leitor ou leitora? Às vezes é assim: vivemos ao lado de tantos afetos e nem os reconhecemos. Ainda bem, dá paz para seguir. Reencarnar é um fluxo divino adestrando-nos para um dia sermos senhores de nós mesmos, plenos no Universo e conscientes de estarmos nos preparando para Deus.


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“A reencarnação é expressiva doação divina para o enobrecimento do espírito em evolução.”

Joanna de Angelis

Lampadário Espírita, FEB, 2005 –Cap. 9

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