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No País dos Renascimentos - Capítulo 4

Vivenda Real



As meninas sempre se recolhiam às 6 da tarde após o toque da “Ave Maria”. Em seus quartos, contíguos aos dos pais, oravam de mãos postas e joelhos no chão a anunciação do anjo Gabriel à Maria, menina ainda, do nascimento, a partir do seu ventre, do Espírito redentor da humanidade. Da. Flausina sempre repetia a lição para as jovens que, de camisolas longas e rendadas, mais pareciam anjos prestes a alçarem vôos noturnos rumo aos países do desconhecido. Nós, meninos, ficávamos à espreita. Daríamos tudo para estarmos ali com as princesas que enfeitavam nossos castelos de luzes refletidas em espelhos sem fim. Nem pensar em entrar naquele refúgio sagrado. Ali só as virgens podiam estar. O ambiente imaculado nem se permitia abrir ao exterior para receber os eflúvios dos raios solares e as benesses do ar rarefeito pelo arvoredo em derredor e pelas águas mansas do rio que rolavam felizes ao encontro dos seus destinos.

Enquanto as meninas se recolhiam eu chorava baixinho e devagar. Como queria estar entre elas. Talvez nem fosse macular-lhes as existências. Queria apenas sorver seus hálitos, ouvir suas falas, enlevar-me por suas preces. Todas as meninas daquela época faziam pactos com as divindades. As suas mãos eram de fadas. Com a agulha e a linha entrelaçadas e trespassando as tessituras dos linhos, formavam casas, casais, flores, palavras, animais domésticos, tudo com tamanha beleza e perfeição que meus olhos de menino travesso e bruto não se continham. Queria crescer logo. Queria estar ao lado de uma menina, deitar-me com ela, ouvir seu coração, escutar seu sono e quem sabe perlustrar seus sonhos. Era o que nós, meninos, sabíamos das mulheres.

As vidas das crianças sonhadoras daquela época quase nada tinham em comum com as vidas das crianças atuais. Um sorriso roubado, um aperto de mão escondido, um beijo nas faces de uma jovenzinha faziam-nos viajar dias e dias em balões coloridos, enfeitando nossos céus. O tal do menino para cá e meninas para lá, aguçavam ou avivam nossas curiosidades. Tudo era virginal. Os lábios, as mãos, os braços e todas as partes do corpo. Aquelas formas imaculadas inoculavam os ambientes dando-lhes aspectos de nobreza.

Houve um dia em que Maria Rosa, de quatorze anos, necessitou casar. Com isso contribuiria com nosso tio nas contas a pagar. Cândido Pires era moço de dezoito. As famílias ajustaram o casamento e chegou o grande dia. Num sussurro da sua morte financeira, nosso tio fez uma festa pomposa. As meninas vestiram-se de damas e nós de cavalheiros e fomos testemunhas daquele casamento. Maria Rosa, minha prima, chorava muito, não se sabia se de medo, emoção ou tristeza ou mesmo alegria. O noivo nos parecia de boa família e, muito rico!

A festa foi inusitada para mim. Conto-lhes. Prestem muita atenção: quando tinha uns três anos meus pais tiveram um acidente. A charrete que os transportava caiu num abismo. Os animais se assustaram por algum gorjeio de aves barulhentas. Meu tio, irmão de minha mãe, tomou-me como seu e, no colo de tia Adélia, cresci bem nutrido. Depois vieram outros primos morar conosco. Eram filhos de outros familiares que sumiram pelo mundo ou morreram de algum mal. Nunca desejei saber suas histórias. Assim, de meninos tínhamos: eu, o Antonino, o Arlindo e o Jairo que era filho do casal. De meninas tinham a Maria Rosa, a Fatinha, Zélia e a Diana. Todas eram filhas da casa. Estava com sete anos quando Diana aproximou-se de mim e ofertou-me uma rosa vermelha e me disse bem nos olhos:

– Damas gostam de rosas vermelhas. Fique sabendo disto de uma vez!

– Mas eu não sou dama. Respondi.

– Pois que pelo menos aprenda a lição.

Diana tinha cinco anos. Era linda. Parecia um cisne azul. Nem sei se existem cisnes azuis, porém era o que eu achava e pronto. Sempre que podia, colhia uma rosa vermelha e a entregava. Um dia tia Adélia viu e parece que não gostou muito. Não disse nada. Quando Diana completou nove anos começou minha paixão. Estava com onze. Meninas de nove anos são muito espertas. Planejam o tempo todo o que vão fazer quando crescerem um pouco mais e Diana vivia pensando, planejando, caminhando e me olhando. Sim, ela devia me ter como seu futuro. Por minha vez a olhava também. Meninos de onze anos da minha época ainda gostavam das brincadeiras de rodar peão, jogar bolas de gude na calçada, correr tresloucado pelos matos e vencer suas corridas.

De forma que nem sempre tinha tempo para olhar Diana. Mas onde eu estivesse, sentia seus olhos acompanhando-me. Pareciam câmeras secretas bisbilhotando minha vida. Até mesmo quando ia tomar banho. Nunca fiquei nu. Tinha a impressão que ela me olhava ali também. Quando ela se recolhia às seis da tarde, sempre passava por mim e roçava levemente suas mãos nas minhas e um dia até me permitiu vê-la de camisola de dormir que cobriam dos seus pés ao pescoço e mais parecia roupa de sair. Diziam na época que quando se dorme saímos pelas ruas, por isso precisamos estar convenientemente vestidos, principalmente as meninas que são vitimas dos vampiros muito mais que os meninos.

O dia que vi Diana de camisola foi o dia mais incrível da minha vida. Não foi pelo fato de vê-la com vestido de dormir e sim o fato de ela confiar em mim. Chamou-me e me entregou um botão da sua blusa vermelha que eu adorava e me disse:

– Guarde-o. É seu.

– E sua blusa? Ficará sem botão.

– Não importa. Colocarei você nele!

Ato contínuo fui ao quarto que dormia e peguei minha melhor blusa e arranquei também um botão, retornei, chamei-a e lhe entreguei o botão da minha blusa. Ela sorriu vencedora e me disse:

– Pronto. Fizemos um pacto. Estou em você e você em mim.

Diana, no dia do casamento de Maria Rosa, estava com treze anos e eu com quinze. Ela sabia cuidar de mim sem que as pessoas desconfiassem, exceto tia Adélia. Quando dividiram os pares vi que eu e Diana ficaríamos juntos, entraríamos de mãos dadas na capela e levaríamos as alianças dos noivos. Nossas roupas foram confeccionadas por importante alfaiate da capital e quando chegaram, quase morremos de alegria. Naquele dia vi o perigo que é não se preparar para as alegrias. Até elas necessitam dos nossos equilíbrios. No dia dos ensaios, procurávamos errar o máximo que podíamos só para entrar de mãos dadas na capela várias vezes. Tropeçava-mos em nossas felicidades e caíamos de amor um pelo outro. Ninguém percebia. A ensaiadora, promoter daquele tempo foi ficando furiosa e houve um momento em que tivemos que fazer direito, senão trocaria os pares. Eu e Diana dormimos em nossos quartos e juntos em nossos corações.

No dia seguinte, à hora determinada, vestimos nossas roupas. Fiquei abismado quando me vi vestido daquela maneira. Era um verdadeiro príncipe. Nunca meus loiros cabelos ficaram tão belos, minha tez tão alinhada com a anatomia do meu corpo perfeito de um metro e setenta e cinco de altura. Calcei as botas principescas. Alguém ajustou a roupa em mim e deu-me retoques finais com essências e pós avivando minha presença.

Estava tão narciso que nem pensei em Diana. Caminhei solene para a sala grande. Estava vazia. Os outros também se preparavam. Na capela ao lado, alguém ensaiava ao violino a marcha nupcial. Estava no fundo da sala quando a música começou. Senti que não estava sozinho ali e virei lentamente em busca do outro. Foi estupefante!

Diana penetrava o salão. Não era a Diana, era os cimos dos céus descendo a Terra em busca da sua estrela perdida. Seu sorriso abriu-se como asas floridas. Seus olhos buscaram-me como se busca a pérola na intimidade da ostra. Caminhamos magnetizados, um em direção ao outro. Ao longe a marcha nupcial tonalizava de emoção o instante. Não podia chegar ninguém. Não era justo para conosco, para com os firmamentos em harmonia, para com os sóis brilhando nas galáxias distantes. À medida que caminhávamos nossos sorrisos se abriam. Ali era o virgem buscando o imaculado. A alvorada buscando a vida para inundá-la com suas bênçãos. Aproximamo-nos. De repente não éramos mais nós. Era ela Flavínia Cássius e eu Antero da Síria, imponentes figuras de um passado remoto.

– Antero! Disse-me sobressaltada.

– Sim Flavínia. Sou eu.

– Há quanto tempo meu amor!

– Desci algumas escadas que levam aos precipícios, mas agora estou de volta e de novo quero os seus braços.

– Sim, querido. Sou sua. Sempre fui sua.

– Por onde andou Flavínia?

– Pelos montes à sua procura.

– Santo Deus! Eu estava nos abismos!

– Quase nos perdemos Antero. A vida tem os seus tempos e eles são implacáveis!

De repente olhei e vi Diana. Ela tomou minhas mãos e levou-as de encontro ao seu peito.

– Teremos angústias, meu querido!

– Não. Jamais vou fazer você infeliz de novo.

A marcha nupcial cessou em nossos corações. Um misto de tristeza e apreensão rondou-nos e em pouco tempo outras pessoas entraram no salão. O casamento transcorreu feliz. Levamos as alianças. Entreguei para Maria Rosa, enquanto Diana entregou para Cândido Pires. Entreolhamos e vimos que nossas lágrimas iguais rolaram pelas faces. Na minha cabeça uma voz maternal falou conselheira:

– É um símbolo, meu filho. Um símbolo!

Eu e Diana não conseguimos ser feliz naquele dia embora todas as pessoas sorrissem e se fartassem das comidas e bebidas. Houve um momento em que pedi a Diana que trocasse sua roupa. Eu também trocaria a minha.

– Não posso. Mamãe quer que eu fique assim. Disse-me quase cúmplice das minhas angústias.

– Seja bela só para mim. Objetei.

– Sou bela apenas para você. Creia nisto. Respondeu-me.

Do alto da sacada uma corneta tocou anunciando a chegada de alguém. Era o rei que determinaria minha morte no grande circo dos gladiadores incorrigíveis. Não temi pela morte e sim pelo que viria depois dela. Coloquei placidamente minha cabeça no holocausto e permiti que o soldado desferisse o golpe fatal. Dentro de mim, alguma coisa dizia:

– Seja forte, Antero. Seja forte. Há um tempo que chega para nós e ele nos trás a grande oportunidade da redenção. Redimidos são aqueles que se fortalecem perante a extrema dificuldade.

Naquele salão adentraram os noivos Maria Rosa e Cândido Pires. Era o momento de cortar o bolo. Momento solene que se perdeu pelos idos e andanças do tempo. O fotógrafo da capital buscou colocar-se de tal modo a pegar o melhor ângulo e eternizar Maria Rosa e seu noivo nos corações dos seus futuros filhos. Sim, os filhos se envaideciam quando olhavam as fotos das núpcias dos pais. A família era o grande tesouro. Pais e filhos se nutriam das bênçãos da união de almas postas juntas pela eterna sabedoria divina.

Ao fim daquele corte de bolo, meu tio pediu a palavra e agradeceu a todos os presentes, desejando à filha os mais distintos graus que a felicidade nos pode ceder. Finda sua fala, efusivamente aplaudida, subiu ao trono dos matrimônios um senhor desconhecido. Vinha das profundezas bárbaras do norte europeu à época dos Césares romanos. Vestia uma capa cinza que escondia todo o seu rosto e seu corpo. Escondia-se dentro dela e me olhou com olhos de fogo quase me derrubando perante todos. Era ele a assombração das crianças, o vampiro das mocinhas, o deus nefasto dos pagãos que mata para saciar-se das carnes das suas vítimas imoladas, nas pérfidas celebrações dos holocaustos. Tinha os dentes podres, unhas enormes e sujas e um hálito que assustava os gambás em seus comas matreiros.

– Senhoras e Senhores, aqui presentes.

Foi assim que inciou sua sentença.

– Trago em minha alma as doces recordações da minha juventude perdida. Quando, na tarde daquele três de novembro, desposei minha cara esposa. Que alegria, senhores. Que felicidade. Cortamos o bolo do casamento e nos juramos um para o outro, até o dia da morte e além dela. Hoje vejo Cândido Pires desposar esta bela jóia chamada Maria Rosa. Que os céus os protejam e que...

Sorrateiramente Diana venceu o turbilhão de pés e mãos e veio encontrar as minhas. Apertou-as nervosamente. Senti que tremia. Depois roçou levemente as tiras do seu chapéu em meus cabelos dourados e me disse quase chorando:

– Ah meu príncipe. Pressinto que chegou a hora do meu holocausto. Tenha-me sempre em sua lembrança. Por favor, não me esqueça. Estarei sempre a seu lado. Juro.

Ela falou muito rápido e baixo que quase não entendi sua fala. Apenas queria que aquele bruxo descesse da tribuna. Aquilo era sufocante. Queria sumir dali com Diana. Apertei suas mãos que ainda estavam nas minhas e fiz menção de sair. Ela me olhou e chorou e do alto da tribuna aquele mago dos feitiços indolentes sentenciou sem dó:

– Desta forma, senhores, peço solenemente e na presença de todos a mão da jovem Diana aqui presente para meu outro filho, Tales Pires também aqui presente. Assim uniremos mais nossas famílias e seremos um...

– Nãããããoooooo... Dei um grito e sai feito perdido correndo amalucado por entre todas as portas e porteiras, jardins e cemitérios, árvores do bem e do mal, silêncios e gritos, traumas e mortes. Cai exausto de tanto correr. Não me permitiria ser de novo decapitado por aquele jumento vestido de César. Enchi o peito de ar e gritei como pude:

– Diana, não!

Minha doce namorada, fingiu sorrir. Olhou para o pai como que pedindo socorro. Meu pobre e frágil tio olhou-a suplicante como a dizer que duas filhas desposando filhos daquele rico senhor, traria paz e tranquilidade financeira para toda a família. Olhei para Diana. Nossas mãos foram se soltando sem querer soltar-se. Os últimos fios de um fluído néctar insistiam por manterem unidas nossas mãos. O fluído vinha dos nossos peitos arfantes, dos nossos corações prestes a desmaiarem. Num relance pensei minha fada nas mãos de outro. Aí, como doeu! Ver sua imaculada pureza ser visitada por outro que nem mesmo eu conhecia. Era minha pérola, meu oásis, meu... Fechei os olhos. Não queria ver desfilar naquele salão o sonho dos meus sonhos em direção a outros braços. Não se tinha mais nada a fazer. Agora o holocausto também reclamava a presença de Flavínia Cássius. Nossos olhos foram se afastando. Havia uma linha que demarcava nossos direitos de amantes, quando Diana transpusesse aquela linha, nada mais poderia ser feito. Por isto o processo foi lento e doloroso. Seu caminhar de dama, donzela, rainha, princesa, aturdiam meus sentidos.

– Venha minha jovem. Venha. Verá o quanto é robusto meu Tales. Será como sua irmã, a mais ditosa das esposas.

Aquele escárnio de gente pigarreou mais este impropério. Fiquei aturdido. Diana subiu lentamente no trono daquele monstro das cavernas e de lá, por uma última vez olhou-me com olhos de fidelidade. Dado instante surgiu das brumas daqueles pensamentos ignóbeis, frutos do interesse, uma figura esquelética, tísica, mal chegada na vida e sorridente feito cão que ganha lauto jantar. Vi que Diana sobressaltou-se. Tales era repugnante. Estava embriagado e cambaleava enquanto andava. Subiu com dificuldades o trono estabelecido e tocou com suas garras as faces puras de Diana. Só não avancei em sua direção, porque outras mãos tocaram as minhas e me seguraram. Eram as mãos de Fatinha, minha outra prima de doze anos. Também bonita, porém muito distante da beleza de Diana.

– Calma primo. Disse-me. Não se exponha. Papai não vai gostar.

Podia não ser bonita, mas era sensata. Resolvi atende-la. Meus tios foram chamados ao trono e aceitaram por Diana o pedido de casamento e os novos noivos entrelaçaram braços e taças e comeram os segundos pedaços do bolo de casamento.

– Casam-se em três meses. Berrou o infernal senhor da barbárie. Todos estão convidados.

Resolvi chorar tudo que podia para não ficar chorando pelos cantos o tempo todo. Os três meses que se passaram foram inenarráveis. Diana confinou-se em seu quarto de noiva e aceitou o fato com autoridade e nobreza.

– Nossos destinos são antes traçados. Disse-me certa vez uma cigana que passou pela fazenda. E assim, aceitamos o destino. Fui novamente convidado para ser o cavalheiro que leva as alianças para a noiva. Não aceitei. Fatinha procurou-me na hora do sono e me disse para aceitar. Ela iria comigo e me ajudaria.

– Diana ficará feliz. Talvez seja a única felicidade que vai sentir no dia do casamento.

O ensaio foi rápido. Fatinha não possuía o dom da sedução de Diana. Era prática e objetiva e, provavelmente não compartilhava com ninguém seus sentimentos femininos. No dia do casamento, lá estávamos. Diana chegou e não me olhou. Era senhora comprometida e senhoras comprometidas não olham para seus amores perdidos. Isto denota traição e elas não desejam que seus verdadeiros amores sintam-nas traidoras. Ah nobreza, porque anda tão distante! O noivo estranho e esquelético vagueava o olhar pelo ambiente. Parecia um abutre aguardando a presa.

Diana aguardou os primeiros acordes da nossa marcha nupcial e caminhou solene pela nave, com a dignidade de quem cumpre o dever. Em dado momento, Fatinha tomou o meu braço e entramos naquele salão, eu feito um touro esfaqueado e ela feito uma mãe que acaricia. Aproximamos do altar. O cerimonial exigia que o cavalheiro beijasse a aliança antes de entregá-la à noiva. Assim o fiz. Retirei do pires com bordas de ouro aquele símbolo de aliança eterna, beijei-a e entreguei a Diana que não me olhou nos olhos, apenas pegou a jóias sem ao menos tocar os meus dedos que a seguravam. Após, distanciei-me dela. Tudo estava consumado. Ela já havia dito o sim. Fatinha tomou novamente meus braços e fomos para o local que nos aguardava.

– Agora será a sua vez. O vampiro maior deve ter outro filho preparado para você. Disse à minha prima.

– Não. Não será a minha vez. Disse-me com certeza.

O fato é que havia sim outro filho. Este, contudo, estava por demais comprometido com sérias confusões amorosas que não autorizariam o pai a expor-se por ele. A festa foi feliz para os comilões e beberrões e para os cofres do meu tio. Tales foi levado quase morto de tanta bebida e Diana desapareceu como nuvem nos céus de algum lugar.

Dois anos se passaram. Havia completado dezessete anos. Cada vez mais esbelto tinha a tarefa de adestrar animais selvagens. Adorava faze-lo. Ali ocupava minha mente que em momento algum deixou de pensar em Diana. Esta, acompanhando o marido tresloucado foi morar na capital onde o sogro tinha importantes negócios e queria que o filho o representasse. Foram pouquíssimas as vezes que Diana apareceu na casa paterna. Quase não saía. Não tinha filhos ainda. Fatinha também crescera. Estava com quase quinze anos e não aceitava interferências em sua vida. Fez um curso rápido na capital e começou a dar aulas para os colonos e seus filhos, ensinando-os a ler e escrever. Era a professora amada por todos. Zélia também se casou e foi morar longe e os meus primos distribuíram entre si as tarefas da fazenda.

Numa tarde, estava sentado no beiral da escada principal de acesso à casa sede quando resolvi olhar para o paiol onde Fatinha ministrava suas aulas. Estava repleto de estudantes e resolvi verificar de perto. Eles riam muito. Rir era algo que havia se perdido em mim. Cheguei e logo vários se levantaram para que eu me sentasse. Agradeci-os. Preferia ficar em pé mesmo. Fatinha olhou-me curiosa e continuou a contar a lenda que motivava os risos. Fiquei ali observando aquela jovem que preferiu ensinar àquelas pessoas rudes o dom de ler e escrever do que sair pelo mundo em busca de outras possibilidades. Era inteligente e, com certeza, encontraria outra pessoa inteligente que a faria feliz. As finanças haviam melhorado, mas nem sempre era sinal de permanência.

Durante muitos dias fui às aulas da Fatinha. Elas me faziam bem. Aprimorei ali meus poucos conhecimentos. Nas fazendas havia os professores contratados para ensinar os jovens. Foi com eles que aprendi alguma coisa. Fatinha, contudo, sabia muito mais e ela me foi passando cuidadosamente as lições restantes e que ainda não faziam parte do meu parco acervo de conhecimentos das letras e das ciências..

As meninas haviam crescido e se casado, de forma que às seis horas não tinha mais o toque de recolher. Assim, certa noite conversei por muito tempo com Fatinha.

– Você a ama, não é?

– E o que adianta isto agora?

– Vejo-o sempre muito tristonho.

– Sou o que sou e tenho o que mereço.

– Sabe por que acontecem esses casos de amores impossíveis?

– A cigana me disse que nossos destinos são traçados. Então o destino dela era diferente do meu.

– Certo. Contudo nem por isso devemos nos entristecer. Se os destinos são marcados também o seu deve estar.

Lá no fundo da minha alma ouvi de novo os acordes daquele violino que tocava a marcha nupcial. Olhei para Fatinha. Era daquelas pessoas fortes, decididas, porém ternamente feminina. Seus olhos suplicavam o aconchego do amor. Suas mãos dedilhavam o vestido à procura das teclas que afinassem com suas canções.

– Eu te amo!

Sim, uma confissão destas só poderia vir de alguém muito forte. Mulheres não se confessavam aos homens. Aguardavam abraçadas aos seus travesseiros o momento de serem eleitas pelo coração amado.

– Antes de nascer já te amava!

Como pode alguém amar o inexistente? Eu nem existia. Ela nem existia e já me amava? Ou então ela existia e se existia porque não também eu? Com Diana as premissas eram a do amor que ultrapassa as cortinas dos pensamentos lógicos para afinar-se com o irreal, com a verdade velada, com os segredos escondidos sob chaves e marcados nos mapas dos tesouros encastelados. Fatinha era diferente. Trazia em si a verdade estampada, sem castelos e sem tesouros encobertos. Olhei-a. Era ela o tesouro. Não havia nada a descobrir.

– Nossos corações nos traem pelas vertigens das suas paixões em exagero. Amamos loucamente agora para desamarmos depois com a mesma naturalidade com a qual trocamos nossas vestes. O amor que amo é o amor que vem das sequências. Do alinhamento das emoções. Das construções frutificadas pela tolerância e pelo respeito. Pela fidelidade e o enternecimento. Amo-o desta maneira.

O menino Calixto, de dezessete anos, sentiu-se criança amaldiçoando as urtigas que o queimaram naquele dia de destempero infantil. Fatinha não era gente como eu. Nunca ouvi ninguém dizer aquelas coisas, nem sabia que elas existiam. Lembrei-me do desafortunado dia em que Diana foi pedida em casamento e das minhas entranhas em ebulição. Se tivesse uma arma, mataria. Se tivesse um veneno, beberia. Sim, de acordo com Fatinha, eu era um coração em destempero. Olhei aquela menina guardiã e perguntei:

– Um coração destemperado pode amar?

– Sim. O difícil será ajustá-lo às realidades do dia seguinte, quando terminam as festas.

– Não se vive o eterno amor do começo?

– Quando as almas estão purificadas sim. Caso contrário os atritos podem desgovernar ainda mais os corações tornando-os infelizes.

No dia do casamento de Maria Rosa, quando participei do ritual das alianças uma voz me disse que era um símbolo. No dia do casamento de Diana, participei com Fatinha daquele mesmo ritual dos símbolos. Será que os símbolos são profetas? Assim sendo, é-nos sempre necessário decifra-los?

– Guardei esta relíquia para você. Disse Fatinha, retirando da sua bolsa de aulas uma toalha dobrada e guardada cuidadosamente numa bolsa de linho. Retirei e vi que estava escrito: Calixto e Diana.

– Ela bordou quando tinha doze anos. Entendeu agora?

Símbolos, de novo os símbolos. Calixto e Diana era o símbolo de uma união conjugal porque abaixo dos nomes duas alianças completavam a arte. Elas estavam nos bicos de dois pássaros em pleno vôo. Trazendo-as ou levando-as. Não se podia definir.

– Sim, fomos avisados. Tanto ela quanto eu.

– Nossos destinos são traçados, entendeu a gravidade desta afirmação?

De fato Fatinha estava certa. Diana bordou a toalha e querendo colocar movimento na sua obra acabou por colocar nossas alianças nos bicos dos pássaros que voam e eles as levaram para longe, para a união da minha prima adorada com outra pessoa. Enquanto que eu, ainda entrelaçado a ela pelas alianças de Maria Rosa e Cândido Pires, tive que entrega-la a outras mãos. Eu entreguei a aliança a Diana que se entrelaçou com Tales Pires. Pensei e murmurei:

– O nosso foi o amor da paixão... Não estava nos nossos destinos.

Faltava ainda completar a história daqueles símbolos. Fatinha havia entregado a aliança para Tales Pires que, ao unir-se a Diana, deixava-a livre para buscar seu amor. Eu e Fatinha nos libertamos naquele ato e, nele, éramos a dama e o cavalheiro. Sim. Era tudo muito claro. A vida fala por símbolos!

– Desperte seu verdadeiro amor Calixto. Ele está guardado bem no fundo de você! Nossas paixões nos induzem a atos que podem nos prejudicar mais tarde. Diana necessita de Tales. Ela gosta de burlar vigilâncias e será agora cassada e procurada em todas as suas ações. Tales é homem necessitado e os necessitados não abandonam quem pode ajudá-los. Vivemos no regime das comunhões matrimoniais indissolúveis, assim sendo, Diana terá a vida que necessita para também aplacar suas paixões e ajustar-se às realidades que a cerca.

– O amor é assim tão insípido? Perguntei.

– Não. O amor é justo e dá a cada um aquilo que precisa independente das suas vontades. Por isso que muitos não o entende. Há, porém, o instante em que ele desperta em nós. O amor insiste conosco e sempre consegue vencer, apesar das durezas que encontra pela frente.

Eu tinha dezessete anos. Era homem feito para domar potros selvagens e transforma-los em dóceis animálias que cumprissem regras e trabalhos domésticos. Eu, contudo, era um potro selvagem e indomável. Daqueles que juram socar e matar, esfaquear ou suicidar, caluniar ou trair, abandonar e trocar de pares quando se quer.

Estava diante de uma senhora de quinze anos, iniciando os movimentos de adestramento a um cavalo simples e forte, musculoso e ágil mundano. Frágil e pequeno perante as estruturas que nos rodeiam, provindas das profundezas do saber. Entendi que Fatinha só podia mesmo ser professora. Não só das letras e dos números, mas igualmente da vida e suas filosofias. Ela me ensinou que o amor é sutil e insinuante e sabe agir na hora certa. Ela me fez rever os salões, os bolos, os convivas e as alianças. E me fez ver que a têmpera de tudo nem sempre passa pelas nossas fornalhas. Que é preciso aquiescer perante os bufões que às vezes surgem e nos furtam ideais cultivados pelas nossas infâncias.

Dois anos depois estávamos em nossa casa confortável. Tornei-me vencedor de torneios com meus “puros sangues”. Tínhamos uma linda filha e não tínhamos paixões que entorpecem. Tínhamos amor que une que nutre que alinhava que edifica seres. Diana continuava casada. Procurava seu templo, seu refúgio. Não me perdoou. A paixão que a nutria não permitia que eu fosse feliz. E eu, feliz, permiti que ela se curasse e transformasse Tales Pires no príncipe dos seus ideais. Naquele dia, Fatinha fez-me deliciosa salada de frutas. Sentamos juntos à mesa. Carolina dormia em seu berço e os pássaros voejavam felizes assim como nós em nossa vivenda real. Os renascimentos nos trazem o certo e nos colocam no momento e com as pessoas que necessitamos estar. Que busquemos a felicidade. Isso é da Lei.






“As paixões são como um cavalo, que é útil quando é domado, mas perigoso quando domina. Reconhecei, portanto, que uma paixão se torna perniciosa a partir do momento em que não mais conseguis dominá-la e que resulta num prejuízo qualquer para vós ou para outrem.


Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos

Editora EME, 3ª. Edição, questão 908, pág. 287


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