Posto Quatro
Fortalezas existem. Sem elas impossível sobreviver a tantos arrastões. Assim passei minha última existência entre empurrões e solavancos, tristezas e lágrimas, angústias e depressões. Sem dúvida foi algo muito difícil, catarse em alto grau. Existia, porém, em mim alguma força que me impulsionava. Era como um barco na tempestade, guiado por mãos invisíveis. Um dia tudo ficou escuro demais. Não ouvi nenhum som, não enxerguei nenhuma luz. Era o fim de uma existência. Não era hora de reclamar, chorar ou debater-se. Era hora de refletir, aguardar, consolidar alguma coisa. Assim, fui recolhida a um plano superior. Era um lugar de muito silêncio. O único som que se ouvia era o da brisa. Em torno, tudo confortante. Calor na medida certa, paz na medida certa, harmonia em vias de consolidação. Era alguém à procura de algo que preenchesse minha vida, de fato, sem os remendos de uma existência quase sem nexo. Fui, na última encarnação, portadora de terrível deficiência mental que, de certa forma, isolava-me dos outros e, de certa forma fazia-me concentrar sobre mim mesma. Sãos os segredos, as intimidades que se passam nos corações daqueles semi isolados do mundo. Via e ouvia tudo. Sentia emoções, sentia vontade de expressar-me, sentia tantas outras coisas e era contida por um cérebro físico mal formado, fruto das invigilâncias de outrora. Via o mundo e as pessoas em flashs. Não me atormentavam, contudo não me acrescentavam. Sentia fome, frio, calor e, minha mãe, sempre prestativa, tentava adivinhar minhas necessidades. Às vezes conseguia, outras não. Emitia sons sem nexo para ela, contudo cheios de verdades para mim. Eram as verdades que eu desejava falar e não conseguia.
Certa vez levaram-me a um parque de diversões. Sentaram-me numa cadeira que girava e girava e me tornava tonta. Queria sair dali e quase me acidentei. Não fossem as mãos sempre prestativas de mamãe eu me jogaria nas engrenagens sem a mínima noção do perigo. Foram quarenta e cinco anos de esperas. Esperava que meu corpo, enfim, cansado, desse-me a liberdade. Esperava que meus tormentos conseguissem acalmar minha alma alinhada nas fieiras das inconsequências. Eu havia sido sexólatra num passado insano. Inveterada companheira da boêmia, dos pares, parceiros, dos drinks e jogos da sedução. Em mim queimava a febre das energias em ebulição que nascem do desrespeito a si e aos outros. Em mim, deficiente mental, ardia o desejo de amar, tocar, ser tocada, ser vilipendiada como das outras vezes. Eu era uma mortal infeliz, martirizada pelas minhas sevícias auto praticadas, em gestos e comportamentos que enfeiam a vida, que perturbam a sequência lógica da evolução. Eu gritava pelo prazer não consolidado e minha pobre mãe nada entendia. Não fosse a santa e semi paralisação dos membros, provavelmente seria amante de mim mesma num átimo de covarde atitude perante o Criador que nos cria para ajudá-LO na grande obra do universo.
Algum fluído compassivo envolvia-me. Sentia presenças, sombras, pessoas invisíveis que acariciavam minha testa molhada, minhas faces contraídas. Houve um tempo em que pessoas desconhecidas penetravam meu quarto e oravam com fervor, davam-me passes que me tranquilizavam por muito tempo. Bebia aquela água que fluidificavam e sentia minhas energias malsãs acalmarem e quase me sentia princesa à procura do par definitivo, único e especial para sempre. Eram médiuns de uma casa espírita que reconhecendo minhas penúrias de devedora apiedavam-se e davam-me um pouco dos seus tempos, da fé que portavam, da certeza que transmitiam. Abençoados samaritanos são aqueles que penetram os recintos da dor para levar a luz da esperança, o conforto da paz, fazendo retornar um pouco que seja da auto confiança naquele que sofre.
A benção para os mortais costuma ser a própria morte que os retira da nau das fantasias ou das expiações. A morte é a sequência lógica da vida física assim como a vida imortal é a sequência lógica da evolução. Chegou o meu dia, o meu tempo. Deixei em paz aquelas células, soldados fiéis, que marchavam sem um general no pleno domínio do seu comando. Apazigüei os elétrons, permiti que os átomos se libertassem para novas conformações, novas possibilidades. Retornei ao mundo espiritual de uma maneira enfermiça, porém, vivenciando uma paz que estava além do meu entendimento. Gostava daquele silêncio. Não conseguia ainda reflexionar. Cultivei a respiração profunda. Amei cada proposta de vida que meu perispírito propunha. Precisava ordená-lo e ele precisava colocar-me novamente de pé. Enganam-se aqueles que pensam que passar pela vida é o mesmo que pegar uma carona no caminhão da estrada e parar na próxima cidade penetra-la licenciosamente, sem pedir permissão, jogando-se nela como vilão, como duende, como impróprio social e impor-lhe suas sujeiras e ignorâncias. Eu era a marca pessoal daquilo com que impregnei pessoas e situações num passado de festas, baladas, bebidas, sexo, pequenos projetos musicais e muito riso debochado das pessoas que passavam sérias em busca dos seus futuros.
Um dia fui despertada para outra realidade. Era hora de erguer-me novamente. O leito onde me encontrava estirada como tábua vazia, começou a levantar-me e uma voz consciente e profunda ressoou dentro de mim.
– Vera, é hora de levantar!
Aquilo era uma ordem suprema. Quem a pronunciou jamais soube. Apenas segui seu comando e coloquei-me de pé. Passos titubeantes, pernas trêmulas, tateante no vazio lá fui eu, um espectro da bela mulher que enfeitava os salões de outrora e era cobiçada, disputada e por quem um assassinou o outro. Ninguém me amparou. O momento era meu. No passado não permitia que ninguém se interpusesse entre eu e o que desejava fazer. Agora, era justo que ninguém se interpusesse para auxiliar-me. Com minhas próprias pernas eu caí. Agora, com minhas próprias pernas deveria erguer e caminhar. Havia um piso, uma porta. Havia um “lá fora”. Aromas e convites invisíveis a prosseguir. Fui assim pegando no nada, quase caindo, claudicando, impondo-me respeito ao momento, felicitando-me pelos pés que caminham. No peito roçou uma ramagem. Os ouvidos captaram sons de um canto que vinham da passarada, virtuoses naturais, em busca dos seus aconchegos. Eu precisava do meu aconchego. Era um caminhar solitário só meu. Eram conquistas perdidas necessitando reencontro comigo. Cansei-me de caminhar dez passos. Precisava de uma cadeira, um banco, tosco pedaço de madeira que me desse o conforto da sua presença. Passei um bom tempo procurando minhas soluções. Um misto de lucidez com penumbras permeava minha consciência. Aos poucos as sombras aquietaram e comecei a ver de novo o dia, de novo a relva, plantações, casas bem posta numa cidade próxima. Deveria caminhar até aquela cidade e adentra-la como se entra na igreja à espera da celebração abençoada do matrimônio. Formar novo lar, nova família, novas possibilidades. Novos eventos sutis que penetram na centelha divina fazendo-a despertar sempre e sempre, num mavioso cantar de um violeiro nas tardes amigas da primavera.
Cheguei ao Posto Quatro. Ali deveria parar e esperar. O tempo de cá não se conta como bem contam vocês o tempo daí. Naquele tempo de espera fui aprumando meu ser. Tornei-me de novo moça bela. A beleza é confortante. Traz-nos eflúvios divinos com os quais os seres completos caminham livres e confiantes. Era de novo moça bem feita, vestida de vermelho como nos velhos tempos coloridos dos festivais de verão. Minhas histórias resolveram saltar de dentro e dizer-me que eram bem vivas. Sim, criança, adolescente, jovem, mulher. Fases e mais fases da minha vida repetiam como sinetes dourados, o badalar de uma existência de faustos e riquezas, de risos e sombrios pensamentos. Comportamentos escusos, brindes, usuras, luxúria e desgastes. De repente, a menina Vera chamou-me de volta e vi a balança da justiça e coloquei de um lado a Vera e de outro a Verônica. A balança se equilibrou. A conta era paga. E agora, espírito imortal? O que fazer das verdejantes pradarias que aparecem como platôs de realizações?
Era hora de adentrar aquele ambiente do Posto Quatro. O fiz com absoluta certeza. Era um refeitório, não das iguarias da culinária conhecida e difundida nos mundos das formas aparentemente fixas. Era o refeitório das energias que positivam e enobrecem nossos mais caros desejos de reabilitação. Havia pessoas, mesas e lugares vazios. Sentei-me num deles. Alguém falava e postei-me para ouvi-lo. As lições, bem conhecem. Provinham do livro sagrado, escrito e vivido pelo Filho do Homem, pleno em Deus, convicto em fazer-LHE todas as Vontades. Luzes de rara beleza emolduravam o ambiente. Lembrei-me dos pobres archotes e castiçais que iluminaram ou esconderam meu desterro de outrora. Falavam da mulher adúltera. Quem poderá jogar-lhe a primeira pedra? Todas as pessoas ali presentes eram mulheres e percebi que todas éramos decaídas das nossas virginais honrarias, dignidades que não se perdem a baixo custo. Ninguém pode se atirar a primeira pedra. A pedra que se auto atira cava poço profundo no coração. Levantei minha cabeça. Olhei-me por inteira. Era gente de novo. O espectro havia cedido lugar a uma mulher galante.
– Não vou atirar em mim as pedras que me jogaram! Num relance de memória vi-me apedrejada pelas línguas felinas daqueles que também erravam. Éramos uma quadrilha que roubava a própria felicidade. Éramos seres suspensos por tênue fio de aço balouçando por sobre o abismo. Cair nele era questão de tempo, de oportunidade. E caí, como se cai das estrelas para os caminhos corretos da vida e se perde por entre os arbustos e se perde o brilho daqueles astros.
– Então, dispostas? Vamos renascer? Perguntou aquela voz de violino afinado com a orquestra sideral que comanda os mundos. Expectante momento e situação. Aos poucos as mãos foram se levantando. Apenas duas ficaram aquietadas nos colos daquelas mulheres. Levantei também a minha. Tinha sede de viver. Tinha necessidade de ser de novo, eu.
Passaram-se anos e mais anos. Aos poucos fui acostumando com aquelas pessoas. Nenhuma delas me era familiar. Nenhuma delas era conhecida de outros tempos. Desfolhando o passado vi-me como escritora de contos pueris que embalavam infâncias físicas e espirituais. Eram belos, faziam a mente voar para os reinos dos encantos em busca dos seus habitantes alados e felizes, preludiando as vivendas dos anjos. Aquilo foi um alento para mim. Eu havia sido alguém de respeito um dia, porque as pessoas me buscavam e se encantavam com minha presença de quase princesa partícipe daquelas histórias. Tinha um marido, filhos e sorrisos. Eu havia sido dama, esposa, mãe, filha. Eu tinha uma família! Ninguém poderá contar o tanto de gotas que rolaram nas minhas faces tornando-a novamente fértil. Aos poucos me senti como a moça daquele tempo e meu vestido vermelho mudou de cor, era agora lilás e estava belo como arminho que se coloca nas golas, nas mangas, para conduzir o farfalhar das roupagens das virgens. Eu era de novo virgem, não só do corpo, mas também dos sentimentos clarificados pelo sol do amanhã.
– Está quase pronta. Dentro em pouco renascerá!
Sim, renascerei e não serei mais a antiga consorte sem sorte de tantos braços, estranhos braços e abraços que enlutaram minha alma, tisnaram-na da tinta viscosa que impossibilita seu giro espiritual e divino. Igualmente não serei a menina Vera, envolvida na tampa mental, próteses espirituais, que ajudam no reencaminhamento dos passos para os rumos certos traçados por Deus, para cada um de nós em particular, quando nos criou. Renascerei cega, grande avanço. Antes muitas partes do meu cérebro estavam embotadas, agora, apenas pequena região não receberá os eflúvios da irrigação. Olharei para dentro de mim, construirei em mim as histórias não pueris da minha jornada. Ela é minha, deve ser palmilhada pelos meus pés. Enquanto me vejo por dentro irei recitar e comentar as parábolas de Jesus para os corações que O buscarem no templo que frequentarei. Ainda não poderei tocar as mãos do meu príncipe que, com certeza me aguarda, nalgum lugar dos reinos construídos pelo Pai. Ainda não poderei receber nos braços a criança-filho, ainda não poderei caminhar em minha casa como sua dona ou rainha, como a esposa que aguarda a chegada da noite e do esposo, mas serei a filha da mesma mãe que, a certo momento, necessitará dos meus préstimos e os farei pelo agradecimento, não pela obrigação de ser filha única, desprezada pelo pai, no dia do seu nascimento.
Um dia estarei de novo no Posto Quatro. Posto que me acolheu, abrigou, reeducou minha mente. Um dia serei como aquela voz de violino afinada com a orquestra que comanda os mundos criados por Deus. Se me virem um dia por aí, tateando e buscando um banco ou lutando por um afresco, dê-me sua mão. Assim nos tornaremos irmãos. Eu cega, você lúcido. Eu em busca do meu mundo, você, livre aprendendo com o mundo de fora que enriquece o de dentro, se soubermos nele caminhar com elegância espiritual.
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“Reencarnação é justiça de braços abertos para acolher os antigos trânsfugas.”
Victor Hugo
Sublime Expiação, FEB, 1998 – L. 3 Cap. 4
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