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Parte 3 - Capítulo 5: "A causa de minha cegueira no século XIX"

TERCEIRA PARTE

A Cidade Universitária


CAPÍTULO V

A causa de minha cegueira no século XIX


Passavam as primeiras décadas do século XVII quando renasci perto de Toledo. Enfrentaria outro renascimento na Terra buscando aprendizados sobre resignação pobreza e humildade regeneradora. Pertencia a uma antiga família de nobres arruinados e, na ocasião, perseguidos por problemas como rivalidades políticas e religiosas e desavenças com a Coroa.


Na primeira juventude ainda era analfabeto, e trabalhava no campo sob o olhar severo de meu pai, rude fidalgo provinciano que caiu em desgraça devido a desmedido orgulho religioso, que o levou a suspeito de infidelidade à fé católica, em vigilância.


As responsabilidades agrárias me incomodavam e sonhava abandonar o campo, me revoltar contra meu pai, tornar-me homem culto e útil como os primos que moravam em Madrid. Invejava-os e era capaz de todo sacrifício para atingir posição social idêntica.


Um dia revelei à minha mãe esse desejo e ela me aconselhou a obedecer aos princípios da Família, dizendo que minha presença era indispensável na casa paterna, até para o bom andamento da lavoura. Minha revolta virou obsessão. Recorri ao pároco e ele aceitou com bondade e desprendimento me ensinar tudo que sabia, sem que minha família soubesse.


Um dia surgiu a infeliz ideia virar sacerdote. Seria o meio seguro e fácil de conseguir o que queria, e não uma honrosa vocação para os ideais divinos.


Sabendo disso, o pároco aconselhou-me evitar usar Deus para servir às paixões pessoais. O Evangelho do Senhor deverá ser servido com renúncias. É caminho áspero, de percalços, e só mais tarde se colherá as flores que plantou.


Quem não tem vocação para a renúncia, não deve se precipitar querendo responsabilidades pesadas que poderiam comprometer o seu futuro espiritual. Prepara a terra para o plantio.

Consolide um lar e uma família Cristã. Seja amigo de todos, sem esquecer dos compromissos.


Afoito passei a me preparar e mantive em segredo os projetos de casamento. Entre as inúmeras moças da aldeia, destaquei uma, sobrinha de minha mãe, à qual havia muito admirava. Chamava-se Maria Magda e era esbelta, linda, com longas tranças negras e perfumadas. Também era filha de nobres arruinados e recebeu boa educação doméstica e social. Passei a flertar e fui correspondido.


A adversidade, no entanto, feriu meu orgulho e Maria Magda preteriu-me por um jovem militar de Madri, primo de meu pai, adepto oculto da Reforma. Chamava-se Jacinto de Ornelas y Ruiz e acreditava-se que era um conde provinciano, herdeiro de boas terras e boa fortuna.


Maria Magda se casou com ele, deixando a aldeia e afastando-se para sempre de mim, que, humilhado, tive o futuro comprometido para aquela existência, falindo nos motivos para que reencarnei. Jurei ódio eterno a ambos. Rancoroso e despeitado, pensava em perversos projetos de vingança, tornando a minha existência um inferno.


Minha aldeia se tornou repulsiva. A saudade inconsolável, a vergonha pela traição, me deprimiram. Perdi a atração pelo trabalho. Amigos me aconselharam em vão a escolher outra companheira.


Voltei a sentir grande serenidade e reconforto na ideia de servir à Igreja. Queria ultrapassar Jacinto na sociedade e no poder, ao mesmo tempo que de qualquer modo humilhasse Maria Magda, obrigando-a a preocupar-se comigo ainda que apenas para me odiar!



A morte de meu pai simplificou os projetos. Sonhei durante noites seguidas sonhos premonitórios que tentavam deter-me, preferindo o casamento honesto com alguma de minhas companheiras de infância. Mas o ressentimento por Magda não me permitiu amar ninguém. Fiz-me sacerdote com grande facilidade!



A Companhia de Jesus proporcionou-me auxílios inestimáveis. Instruí-me brilhantemente à sua sombra, absorvendo todo conhecimento que me era passado. Era como se minha inteligência apenas recordasse do que era dado a aprender, tal o poder de assimilação que existia em minhas faculdades! Prendi-me com gratidão à Companhia, obedecia aos superiores com zelo fervoroso. Aprendi a respeitar e servir os interesses da Igreja, e do clero, fossem quais fossem.


Mas não me dediquei à causa divina, tampouco aprendi a amar a Deus ou a servir o Mestre Redentor. Da poderosa organização religiosa que foi a Companhia de Jesus, eu apenas desejava a posição social que ela me podia proporcionar, a qual me compensasse da obscuridade do meu nascimento.


Persegui, denunciei, intriguei, menti, condenei, torturei, matei! Não com requintes de maldade: meu intento era servir os superiores e crescer na Companhia. E eu mesmo fui vítima da instituição, porque, sabendo que eu era submisso, os chefes exploravam tais sentimentos, induzindo-me à prática de crimes.



Se eu tivesse optado por alguma comunidade franciscana, teria me educado, me transformando numa alma crente e bondosa. Pelo menos teria respeito ao nome do Criador e empatia pelas desgraças alheias. A Companhia de Jesus, no entanto, me converteu em criminoso.


Envolvido com a religião, por muito tempo esqueci aqueles traidores. Haviam se mudado para a Holanda. Mas quinze anos depois o acaso me pôs novamente na presença deles! A missão militar de Jacinto acabou e eles voltaram à Pátria, gozando de excelente conceito e posição social. Ao me ver obrigado a apertar sua mão em certa cerimônia religiosa, fiz como se fosse um estranho, embora o coração palpitasse com aas doridas angústias vividas no passado, que fervilhavam. A chaga aberta sangrava ainda, clamando por desforras e represálias!


Procurei observar a vida do meu inimigo e seguir seus passos. Jacinto era feliz com a esposa, tinham filhos, aos quais educavam com boa moral. Maria Magda, dama formosa, apresentava a beleza digna dos trinta e três anos. Desorientado, enlouquecido ao vê-la pela primeira vez, depois de tantos anos, senti que não a esquecera, que a amava ainda. A antiga paixão renasceu ainda mais ardente e comecei a vê-la novamente, todas as semanas, numa das igrejas da nossa diocese, pois desejava parecer uma boa católica para ocultar as verdadeiras inclinações reformistas de sua família.


Tentei conquistá-la a todo custo, mas me repeliu sem compaixão mantendo extrema fidelidade conjugal. Jacinto de Ornelas, que sabia de minha paixão por sua esposa, me vendo cercá-la e sabia das minhas intenções. Eu, aliás, não procurava dissimulá-las e agia acintosamente.


Ciente dos fatos pela própria esposa, encheu-se de temor e preparou-se para deixar Madrid com a família. Mas descobri os planos a tempo e, como não seria possível viver sem Magda, denunciei Jacinto de Ornelas como huguenote, ao Tribunal do Santo-Ofício, pensando em, me livrar dele para ficar com sua esposa! Provei com fatos a denúncia para me vingar.


Uma vez preso e processado, Jacinto foi-me entregue por ordem de meus superiores, e o conservei desde então preso numa masmorra infecta, passando privações, angústias e sofrimentos indescritíveis. Descontei nele a minha revolta. Meu despeito e o ciúme que me alucinara tantos anos inspiraram-me a fazer torturas terríveis. Cobrei a Jacinto de Ornelas y Ruiz, na sala de torturas do tribunal da Inquisição, tudo que me roubara. Magda procurou-me e suplicou que eu parasse, entre lágrimas. Falei então, após lançar lhe o odioso fel que extravasava de mim, que ela teria a vida de seu marido se se entregasse a ele.


Maria relutou ainda durante alguns dias, mas se apresentou, por entre lágrimas e súplicas, tentando me demover dessa ideia indigna. Eu fui irredutível e bárbaro, como ela própria foi, quando me viu suplicar, desesperado quando foi embora! Aquela mulher que eu tanto amara, que teria feito de mim o esposo escravo e humilde, tornara-me um monstro em favor de outro!


Levantavam-se, então, das profundezas do meu ser psíquico, tendências maléficas que, em Jerusalém, no ano de 33, me fizeram condenar Jesus de Nazaré em favor da liberdade do bandoleiro Barrabás! Aliás, existia muito capricho e vaidade nas atitudes que me levavam a desejar a ruína de Magda; e, eu me rejubilava com a satisfação de vencê-la!


Alguns dias depois, descendo à sala de torturas e vendo a que se reduzira seu belo marido, aceitou fazer minhas vontades para suavizar seus sofrimentos e conservar aquela vida para ela preciosa.


Vendo o sacrifício de Magda por amor, me senti execrado. Não pôde ocultar o desprezo e o ódio que eu lhe inspirava. Maria Magda pedira-me a vida e a liberdade do marido e me comprometi a conceder. Esqueceu-se, porém, de fazer-me prometer restituí-lo intacto, sem mutilações! Então, fiz que lhe perfurassem os olhos com pontas de ferro incandescido. Oh ! ainda hoje, três séculos depois, recordar me fere-me cruciantemente a alma a visão da desgraçada esposa prostrada de joelhos, em pranto, diante do esposo cego, abraçando-lhe e beijando-lhe as mãos com indescritível ternura.


Jacinto, inconformado com a situação deplorável, não desejando tornar-se um estorvo, suicidou-se dois meses depois de obter a liberdade, auxiliado no gesto sinistro pelo próprio filho mais jovem, que, na inocência dos seus cinco anos de idade, entregara ao pai o punhal que cravou na garganta. Maria Magda voltou para a aldeia natal com os filhos, desolada e infeliz. Já se passaram três séculos e ainda não pude obter notícias!


O arrependimento logo veio e nunca mais tive tranquilidade sequer para dormir. Indescritível estado de superexcitação nervosa me atordoava, fazendo-me ver a imagem de Jacinto de Ornelas, martirizado e cego, por toda parte. Meu desejo de reparação teve início no momento em que, entregando Jacinto à sua mulher, a vi prostrar-se diante dele, com um sublime amor e compaixão, que eu não estava à altura de compreender. Daí em diante procurei evitar cumprir as ordens tenebrosas de meus superiores, o que me levou ao cárcere perpétuo.


Da segunda metade do século XVII até agora, comecei a expiar, na Terra como encarnado ou no Invisível como Espírito, os crimes e perversidades cometidos. Arrependimento sincero é o que me encoraja a enfrentar todos os infortúnios, para ver se apagando da minha consciência todo o pesar de ter usado o nome do Divino na prática de ações criminosas.


Somente na segunda metade do século XIX me preparei para a última fase das expiações inalienáveis: - a cegueira! Deveria perder, de qualquer modo, a vista, impossibilitado da subsistência própria, privado do trabalho em lugar de receber auxílio, que quanto mais compassivo e terno, mais vexatório e humilhante para o desmedido orgulho que ainda não pude exterminar do meu caráter.


Deveria cumprir o planejamento de forma resignada e digna, lamentando as ações contra o rival de outrora e atestando respeito a Jesus, cuja memória fora ultrajada por mim tantas vezes! Mas todos vocês sabem da fraqueza que me assaltou ao me ver cego.


A Justiça do Criador nos deixa entregues à nossa própria responsabilidade para nos punirmos ou nos glorificarmos através das nossas ações nas sucessivas existências! O mesmo horror que Jacinto de Ornelas sentiu pela cegueira eu senti também, três séculos depois. Os tormentos morais, as angústias, as humilhações insofríveis, o desespero inconsolável ao se ver à mercê das trevas, e que levaram meu rival ao erro do suicídio, também em mim se acumularam com tanta efervescência que lhe imitei o gesto em 1890, tornando-me suicida como ele em meados do século XVII...


E assim foi que aconteceu... E a fatalidade é essa criação nossa, gerada pelos nossos erros e inconsequências através das idades e do tempo!

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