TERCEIRA PARTE
A Cidade Universitária
CAPÍTULO VII
Últimos traços
Palavras de Camilo:
Faz cinquenta e dois anos que habito o mundo astral. Tendo-o atingido através do suicídio, ainda hoje não alcancei a felicidade, nem a paz íntima que é prêmio dos justos e obedientes à Lei. Tenho adiado o sagrado dever de renascer no plano físico-material envolvido em um novo corpo, o que agora já vem amargurando os meus dias, pois gostaria de sorver ainda, junto dos instrutores, conhecimento suficiente para proteger-me o suficiente para me tornar vitorioso nas grandes lutas que enfrentarei rumo à reabilitação moral-espiritual.
Aprendi muito durante este meio século em que permaneci internado nesta Colônia Correcional que me abrigou nos dias mais ardentes. Mas, se algo aprendi do que era necessário para a reabilitação, também muito sofri debruçado sobre a perspectiva das responsabilidades dos atos por mim praticados! Mesmo desfrutando o convívio de tantos amigos devotados, chorei, enquanto, muitas vezes, o desânimo tentava deter meus passos nas vias que tracei.
Aprendi, porém, a respeitar a ideia de Deus, força vigorosa a me escudar, auxiliando-me no combate a mim mesmo. Aprendi a orar e trabalhei, esforçando-me diariamente, durante quarenta anos, ao contato de lições sublimes de mestres virtuosos e sábios, para que a Humildade surgisse para combater o Orgulho que durante tantos séculos me vem conservando no mal. Por conta da Legião dos Servos de Maria também comecei a conhecer o Amor, e com eles colaborei nos serviços de auxílio e assistência ao próximo, desenvolvendo-me em trabalhos de dedicação àqueles que sofrem, como jamais me julgara capaz!
Lutei pelo bem, guiado por essas nobres entidades, estendi atividades em que foi permitido contribuir para acalmar vários corações maternos, para alegrar muitos rostinhos infantis, para colocar esperança no coração dos moços desesperançados diante da realidade adversa.
Durante quarenta anos trabalhei ao lado de meus bem-amados Guardiães! Servi ao Bem, experimentando atitudes fraternas, e ao Belo, aprendendo a homenagear a Verdade e dando à Arte o que de melhor e mais digno foi possível extrair de minha alma.
Ainda assim, jamais me senti satisfeito e tranquilo comigo mesmo. Existe um vácuo em meu ser que só será preenchido com a renovação em corpo carnal, depois de plenamente cumprido o dever que não foi realizado na última romagem terrena, abreviada pelo suicídio! A recordação dolorosa de Jacinto de Ornelas y Ruiz, por mim desgraçado com a cegueira irremediável, num gesto de despeito e ciúme, permanece inalterável, impondo-se como estigma trágico do Remorso, requisitando penalidade idêntica de meu destino futuro, ou seja - a cegueira, já que a prova máxima de ser cego fora por mim anulada à frente do primeiro. Há muito devera eu ter voltado à reencarnação.
O que aprendi nas Academias da Cidade Esperança foi-me concedido generosamente pela diretoria da Colônia, que não interpôs dificuldades ao longo aprendizado que desejei fazer. Até mesmo avantajados elementos da medicina psíquica adquiri no contato dos mestres, durante aulas de Ciência e no desempenho de tarefas junto às enfermarias do Hospital Maria de Nazaré, onde sirvo há doze anos. Tal aptidão vai me possibilitar ser um "médium curador", mais tarde, quando novamente for para a crosta. Faltava-me, todavia, o idioma fraterno do futuro, unificador das raças e dos povos confraternizados para a conquista do mesmo ideal: - o progresso, a harmonia, a civilização iluminada pelo Amor! Esperanto era estudo facultativo, como, aliás, todos os deveres, mas que os iniciados aconselhavam a fazermos, pois esse idioma, cujo nome simbólico é o mesmo de nossa Cidade Universitária, isto é, Esperança, resolverá problemas até mesmo no além-túmulo, facultando aos Espíritos elevados se comunicarem eficientemente, através de obras as quais o mundo terreno tende a receber do Invisível nos dias futuros - servindo-se de mediúnicos habilitados com mais essa faculdade a fim de atenderem aos imperativos da missão.
Me convinha a aquisição, no plano invisível, desse novo conhecimento, ou seja, do idioma "Esperanto". Ao reencarnar, levando-o nas fibras do cérebro Perispiritual, em ocasião oportuna me viria a intuição de reaprendê-lo ao contato de mestres terrenos. Eu fui informado, aliás, de que seria médium na existência vindoura e me comprometi a trabalhar, uma vez reencarnado, pela difusão das verdades celestes entre a Humanidade, mesmo com o fantasma da cegueira.
Meditei profundamente na conveniência que seria conhecer um idioma universal entre os homens e os Espíritos, e que poderia até mesmo como médium que serei, produzir em prol da causa da Fraternidade - a mesma do Cristo -, uma vez o meu intelecto de posse de tal tesouro. Obtida a permissão para mais esse curso, matriculei-me na e me dediquei fervorosamente.
Não era simplesmente um edifício a mais, era também um templo. Sentindo vibrar a emoção nas cordas sutis do meu Espírito, subi as escadarias que levavam à alameda principal. Ao longe, o edifício resplandecia em esmeraldinas, e que não obedecia ao clássico estilo hindu. Lembraria antes o estilo gótico, evocando mesmo certas construções famosas da Europa, como a catedral de Colônia. O interior era o que de mais belo e mais nobre pude apreciar nos interiores da Cidade Esperança. Feição de catedral, com um acento de arte fluídica da mais fina classe que seria possível conceber, e que não pertenceriam à falange, mas sim, uma filial da grande Universidade Esperantista do Astral, com sede em outra esfera mais elevada, a qual irradiava inspiração para suas dependências do Invisível, como até da Terra, onde já se iniciava entre intelectuais e pensadores de todas as raças planetárias!
Também não era dirigida por iniciados em Doutrinas Secretas. Seus diretores eram neutros, na Terra como no Além, em matéria de conhecimentos filosóficos ou crenças religiosas em geral. Ali destacamos grandes vultos reformadores do Passado emprestando do seu valioso conhecimento, alguns deles tendo vivido na Terra com os nomes registrados na História como mártires do Progresso, tendo estado em várias etapas terrenas pela melhoria da situação humana e da confraternização das sociedades.
Surpreendido, encontrei plêiade de intelectuais de toda a Europa aderidos ao movimento, entre muitos o grande Victor Hugo. Sentei e averiguei que o elemento feminino era superior em número ao masculino. Durante o prosseguimento de todo o curso, minhas gentis colegas de aprendizado se dedicavam à armazenagem no cérebro perispirítico das bases espirituais de um idioma que, uma vez reencarnadas, lhes seria útil no futuro, assim para a mente como para o coração, aumentando possibilidades de suavizar situações, remover empecilhos e solucionar problemas.
Desde o primeiro dia de aula na Academia de Esperanto verificou-se magistral desfile de civilizações terrenas. Suas dificuldades, muitas até hoje pendentes, e muitos dos seus impasses foram analisados sob nossas vistas interessadas, em quadros expositivos como o cinema, mostrando a Humanidade a debater-se na multiplicidade de idiomas, um dos flagelos que assolam a atribulada Humanidade, complicando até mesmo o seu futuro espiritual.
A simplificação dos casos, a remoção das dificuldades, a aurora de um progresso alicerçado na clareza de um idioma que será patrimônio universal, da mesma forma que a Fraternidade e o Amor, unindo ideias, mentes, corações e esforços para um único movimento geral, uma gloriosa conquista: - a difusão da cultura em geral, a aproximação dos povos a felicidade das criaturas.
Soletramos, então, os vocábulos, que eram apresentados através de quadros vivos e inteligentes. Sobrepostos em sequências de leitura, fornecendo o que necessitávamos para nos apossarmos dos segredos que nos permitiriam mais tarde até mesmo discursar fluentemente, em assembleias seletas.
E tais eram as perspectivas que nos acenavam, que nos sentimos triplamente irmanados a toda a Humanidade: pelos laços amoráveis da Doutrina do Cristo; pela Ciência que nos iluminava o coração e pela finalidade a que nos levaria a aprender um idioma que nos faria sentirmos em nossa própria casa, em qualquer local.
A a Embaixada Esperantista em nossa Colônia não se limitava a facultar elementos linguísticos, mas promoviam visitas de confraternização, para encorajarem os irmãos de ideal ainda encarcerados nas dificuldades de antigas delinquências. Grandes turmas de alunos, aprendizes do mesmo movimento, e pertencentes a outras esferas, aderiam a tais congressos, colaborando para o reconforto de seus pobres irmãos prisioneiros do suicídio. Então, eram dias festivos em Cidade Esperança!
Nas suntuosas praças circundavam o palácio da Embaixada Esperantista, realizavam-se os jogos florais, perfeitos torneios de Arte Clássica, durante os quais o espectador se deixava transportar diante do Belo! Destacavam-se os bailados quando os formosos conjuntos traduziam a arte de Terpsicore através do tempo e das características das falanges que melhor souberam interpretá-la. Jovens que viveram outrora na Grécia; depois, egípcias, persas, hebraicas, hindus, europeias, extensa falange de cultivadores do Belo a encantar-nos com a graça de que eram portadoras, cada grupo alçando ao sublime o talento que lhes enriquecia o ser.
Enquanto isso, efeitos de luz inundavam o cenário e fogos de artifício desciam do firmamento. Todo esse empolgante espetáculo de arte, se fazia acompanhar de orquestras que tonificavam nossos Espíritos, alimentando nossas tendências para o melhor, descortinando horizontes para o plano intelectual! Quantas vezes músicos célebres que viveram na Terra acompanharam as caravanas esperantistas, colaborando com suas sublimes inspirações, agora muito mais ricas e nobres, pelo Amor ao próximo e o culto à Beleza que promoviam!
Mas tudo isso era manifestado em estado de alta moral que os humanos estão longe de conceber! Sucediam-se, porém, os concertos, as peças musicais e os combates poéticos! E o idioma que se utilizava era o Esperanto. O que viram é apenas o início da Arte no além-túmulo, a expressão mais simples do Belo. Em esferas mais bem dotadas que a nossa existe mais, muito mais!
Deve, porém, a alma pecadora se refazer das quedas, crescendo através da renúncia, do trabalho e do amor. O sentimento do dever me leva a pensar na necessidade de voltar à Terra para me afinar definitivamente com a Ciência da Verdade que acabo de conhecer durante meu estágio nesta Colônia.
Não mais deverei permanecer em Cidade Esperança, a menos que pretenda agravar minhas responsabilidades, estacionado. Dos antigos companheiros e amigos que imigraram do Vale Sinistro e que do Hospital ingressaram na Cidade Universitária, sou eu o único que permanece até hoje aqui, desencorajado de experimentar os embates expiatórios das arenas terrestres.
Belarmino de Queiroz e Souza, o nobre amigo, há dez anos que partiu para novas experimentações, tendo preferido renascer no Brasil, por maior facilidade lhe oferecer, ali, o amparo da protetora Doutrina que abraçou durante os preparatórios nas Academias. Perdeu a mãe, tuberculosa, um ano depois do nascimento. Muitas vezes tenho sussurrado palavras de ternura aos seus ouvidos infantis, durante as horas desoladas em que se põe a pensar, pequenino e infeliz, em sua infância angustiosa.
O braço semiparalítico, herança inevitável do suicídio no século XIX; mirrado e enfermo filho de tuberculosa, com idêntico futuro a aguardá-lo na maioridade! Desejei partir com ele, servir-lhe de irmão, vivendo a seu lado para ampará-lo. Seria impossível fazê-lo por missão de tanto amor não estaria ao alcance de um réprobo como eu, carente dos mesmos socorros. Na Terra, nossos destinos diferentes e mais tarde, após a vitória das provas bem suportadas, nos reencontraremos, aqui mesmo, a fim de reiniciarmos a marcha para o Melhor.
Doris Mary igualmente se apresentou e desejava segui-lo no círculo familiar, pois o amava ternamente e faria sacrifícios para suavizar lhe as provas, mas também não foi concedida permissão para tanto, pois implicaria em infortúnios sucessivos e Doris possui méritos, tem direitos e compensações concedidas pela Lei. Agora, seus guias não aconselharam novos sacrifícios pelo filho e tampouco por Belarmino, que idêntico desgosto causou à sua dedicada mãe. Ela velaria por ambos, qual protetora do Além projetando inspiração e consolo nas horas decisivas!
Joel também desceu às renovações reparadoras, assim como João d'Azevedo e Amadeu Ferrari, e há oito anos os vi ingressar no Recolhimento para os devidos preparativos. Este último, presa de desgostos e inconsoláveis remorsos, nem mesmo terminou o curso de preparatórios que conviria a todos nós. Muniu-se de ardente coragem e partiu, para o Brasil ainda, solicitando um envoltório corporal negro e humilde, onde positivasse o duplo pesar que o afligia: - o suicídio de ontem e a tirania de outrora, como senhor de escravos.
Não sei por que me não encorajei ainda a imitar o gesto nobre, quando até Roberto de Canalejas acaba de reencarnar em formosa missão ligada à Terceira Revelação, assim como Ritinha de Cássia, a linda e encantadora vigilante.
Canalejas não se casará, fiel ao antigo sentimento pela adorada, preferiu servir a causas em prol da coletividade. Rita, porém, pediu e obteve permissão de continuar ajudando Joel, casando com ele.
No vasto dormitório do Internato, onde moro desde 1910, só existem "novatos". As vezes fico desolado, sentindo a ausência dos amigos que já reencarnaram. Seus leitos são hoje ocupados por outras entidades com as quais não tenho proximidade. Me sinto saudoso e sei que devo também reencarnar o quanto antes para resolver as dívidas incômodas da consciência!
Embora deva seguir, sei que não estou ocioso e busco servir aos mais sofredores que eu, tanto na crosta do planeta como no perímetro de nossa Colônia, únicos limites em que poderei transitar enquanto não apresentar à Grande Lei os testemunhos devidos! Mas nada disso será capaz de melhorar minha vergonha de mim mesmo por estar estacionado após tanto estudo preparatório, aguardando a experiência do renascimento para provar os valores adquiridos.
Sob orientação dos mentores tenho visitado os amigos de outrora, agora de volta ao cárcere carnal. Há cerca de dois meses regressei de um estágio no Brasil, onde trabalhei na divulgação da verdade sublime que hoje me edificam. Levou-me o bom mentor a visitar Mário Sobral, reencarnado. Caí em prantos ao ver o corpo mutilado do desgraçado amante e assassino da formosa Eulina, em sua habitação miserável, construída em tábuas. Mal vestido, pés descalços feridos e sujos; mutilado das mãos, cabelos ainda revoltos, despenteados, como no Vale Sinistro; traços fisionômicos semelhantes aos que conhecíamos no Além; enfermo e nervoso, atacado de estranha enfermidade na traqueia e nos canais faríngeos, tendo crises constantes; sem família, porque outrora, em Lisboa, ultrajou o círculo familiar em que havia nascido; pobre, miserável e faminto, porque não foi depositário fiel dos bens materiais que o Céu lhe confiara no passado; analfabeto, uma vez que, universitário em Coimbra na existência pregressa, não aproveitou a capacidade intelectual para a edificação de si mesmo e dos semelhantes.
Ramiro de Guzman, ao meu lado, sorria enternecido com meu pranto, tentando reconfortar-me:
- O que vemos aqui é um lindo trabalho de reerguimento de uma Alma, a quem o remorso sincero levou à reparação. Mário traçou, ele mesmo o mapa de expiações por que passa agora e a doença no aparelho faríngeo foi originada pelo enforcamento. Ou seja, todo este lamentável presente é nada mais que obra do seu próprio passado e não punição vinda de um juiz austero que deseja se vingar.
Destes escombros ruinosos, surgirá a alvorada de progressos novos para Mário Sobral. Aqui se refazendo, estará quitando a dívida que o atava ao remorso, reabilitando-o perante si mesmo e perante as leis que infringiu... Aliás, ele não está aqui abandonado, à mercê da caridade humana, pois é pupilo da Legião dos Servos de Maria e se encontra registrado no Hospital Maria de Nazaré, sob o tratamento que é a encarnação. Irmão Teócrito, vigilantes e enfermeiros do Hospital o assistem carinhosamente, por ele velando diariamente. enviando energias, coragem e esperanças. Mário sente-se até mesmo feliz nesta condição, pois, na consciência, a certeza de que está cumprindo o sagrado dever e se afinando às leis do Bem e da Justiça universais.
Calei-me, resignado e pensativo, meditando nas resoluções urgentes que eu mesmo deveria tomar. De Guzman pôs as mãos translúcidas sobre a fronte de Mário e eu me detive em concentração, suplicando alívio ao mísero comparsa. Terminado o trabalho, Ramiro virou-se para um ângulo sombrio do casebre, que eu deixara de examinar e apontou para uma forma que, humilde e silenciosa, velava o doente, enquanto costurava remendos e já rotos.
Ao lado da única porta existente no domicílio, uma mulher negra, pobremente vestida, asseada, aparentando cinquenta anos, com fisionomia singela e humilde. Fazendo um esforço, recordei que há cerca de quarenta anos, época em que Mário retornou ao círculo carnal terreno.
A mulher se aproximava do enfermo, ministrando medicamentação homeopata e em torno do seu cérebro se erguiam as imagens a refletir seus pensamentos. Eu compreendi ali que Mário renascera em um bordel. Sua mãe, inconformada ao ver nascer uma criança mutilada e doente, repeliu o ser que concebera e que seria empecilho a sua liberdade. Entregou então o filho a uma pobre lavadeira que vivia perto, prometendo gratificá-la mensalmente pelos serviços prestados ao pequeno.
A boa operária aceitou, não visando somente o dinheiro, mas, principalmente, por um impulso de caridade. Adepta do conhecimento da Terceira Revelação, sabia que a adoção daquele ser que assim entrava na sua vida terrena, rodeado de tão sombrias heranças do passado certamente seria parte de sua programação reencarnatórias. Assim, recebeu-o em seu humilde barraco, procurando amá-lo quanto possível.
Tinha além dele uma filha de dez anos, trabalhadora e cooperativa, que se afeiçoou ao irmão adotivo e criou pacientemente o enfermo, dedicando-se durante quarenta anos à missão. Quinze anos após Mário chegar, perdeu sua genitora e continuou abnegada, trabalhando para que seu irmão não tivesse de esmolar tanto pelas ruas, pois a promessa da gratificação pela mãe irresponsável, feita no momento do repúdio ao filho não foi cumprida.
Me aproximei da mulher e, num gesto de agradecimento pelo meu amigo querido, descansei a destra sobre aquela fronte negra que e murmurei emocionado: "- Que Jesus a abençoe, minha irmã, pelo muito que faz pelo pobre Mário, a quem sempre conheci tão sofredor!". D. Ramiro de Guzman, aproximando-se, surpreendeu ao me contar quem estava ocupando este humilde e honrado envoltório corporal, se desdobrando em atividades cristãs a serviço do próprio reerguimento espiritual: Eulina!
E assim, tomei a resolução inadiável de seguir no dia seguinte para o Departamento de Reencarnação, a caminho do Recolhimento, para tratar do esboço corporal físico-terreno, cuidando de pesquisas para o ambiente mais propício ao renascimento. Desejei levantar, eu mesmo, o programa para minhas tarefas de reajustamento. Ficarei cego aos quarenta anos, assim como Jacinto de Ornelas. Os amigos queridos prometeram se debruçar sobre meus passos, me guiando e inspirando-me nas horas decisivas.
A assistência médica do Departamento Hospitalar acompanhará a evolução do meu próximo futuro envoltório carnal desde o embrião até os derradeiros instantes da agonia e da separação do meu Espírito. Serei libertado do corpo físico aos sessenta anos de idade, tendo, portanto, vinte anos para olhar só para dentro de mim mesmo e realizar trabalho de domar manifestações do orgulho que ainda existe em mim.
Frequentemente me assalta o receio de uma nova queda, do esquecimento dos deveres e tarefas a cumprir. Mas meus instrutores me certificaram que bagagem sólida adquirida no estágio reeducativo. Despedi-me de todos os amigos e companheiros, que me prometeram assistência durante o exílio irremediável. Já sinto saudades daqui, onde tantos e preciosos esclarecimentos adquiri.
Falta pouco e todos vieram me visitar - chefes de seção, enfermeiros, vigilantes, e até psiquistas e instrutores me felicitam pela resolução tomada e desejam dias gloriosos para o meu Espírito em reabilitação. Me estimulam e por tudo me sinto agradecido, certo de que, nas novas provas que me esperam às margens pitorescas do velho e querido Tejo, falange luminosa de entidades amigas estará presente para me reanimar.
E ontem me ofereceram uma festa de despedida! Uma surpresa me esperava me deixaram contemplar através dos possantes aparelhamentos de visão a distância, a formosa Mansão do Templo. Assisti, assim, a uma assembleia de iniciados e ouvi seus discursos sublimes. No santuário onde se reuniam, lá estavam - a mesa da comunhão com o Alto e os doze varões responsáveis por toda a Colônia unidos em ideais para o solene momento da Prece!
Em seguida me mostraram a vista arrebatadora do querido local onde só poderei entrar novamente na volta da encarnação que me espera. As lágrimas inundaram minha face enquanto minhalma murmurava a si própria:
- Coragem! Volta ao ponto de partida, reconstrói o teu destino e virtualiza o teu caráter. Sofre e chora resignado, porque tuas lágrimas lavarão sua consciência! Deixa que teus pés sangrem diante dos infortúnios das reparações terrenas; que teu coração se despedace nas adversidades e desilusões. Mas tem paciência e seja humilde, se lembrando de que tudo isso é passageiro. E aprende, de uma vez para sempre, que és imortal e que não será pelos desvios temerários do suicídio que a criatura humana encontrará o porto da verdadeira felicidade...
--- fim---
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